Em 5 de dezembro completou um mês a tragédia de Mariana-MG, como ficou conhecida a catástrofe que se abateu sobre uma região da cidade, com o rompimento da barragem do Fundão, da Mineradora Samarco. Controlada pela brasileira Vale e a mineradora anglo-australiana BHP Bilton, a Samarco responde junto com as controladoras pelo maior desastre ecológico da história do país. Seis localidades de Mariana foram atingidas, sendo Bento Rodrigues a que mais sofreu. Este vilarejo de 317 anos, com alguns prédios históricos, foi totalmente destruído, soterrando igreja, escola e residências.
O desastre foi provocado pelo rompimento de duas barragens de rejeitos – resíduos resultantes da exploração do minério de ferro – da mineradora localizadas a cinco quilômetros do distrito de Bento Rodrigues. A empresa informou que procurou avisar os moradores por telefone. Tipo de alarme ineficaz, numa tragédia dessas. Sem que os telefones funcionassem, a solidariedade dos moradores do distrito evitou que a tragédia ceifasse ainda mais vidas.
Ainda não foi possível dimensionar a extensão total do desastre, porque os efeitos continuam aparecendo e a lama não parou de escorrer. Mas essa crise, transmitida praticamente online para todo o país, varreu do mapa Bento Rodrigues e tudo ao redor, e poluiu irremediavelmente uma dos maiores bacias hidrográficas brasileiras, que corta dois estados e inúmeras cidades. A onda devastou outros sete distritos de Mariana e contaminou os rios Gualaxo do Norte, do Carmo e Doce. Ela resulta da combinação letal, responsável por inúmeras tragédias todos os dias pelo mundo: a ganância do empresário com a omissão dos órgãos fiscalizadores, principalmente o Estado.
O passivo financeiro das empresas responsáveis é incalculável. Os órgãos ambientais e o Ministério Público calculam que elas deverão arcar com pelo menos R$ 20 bilhões para cobrir todas as reparações. Foi solicitado o bloqueio de bens da Samarco e das duas controladoras, nesta semana, devido ao não cumprimento de determinações do MP quanto a moradias e indenizações. Sucessivas audiências e multas têm tentado amenizar o prejuízo dos moradores atingidos e do meio ambiente. Esse desastre ecológico e humano foi uma das piores crises que se abateram sobre o Brasil este ano. Como se não bastassem outras graves crises que o país enfrenta, como a crise política, a crise econômica, a crise energética, a seca no Nordeste; e a recorrente crise na saúde, com o zika vírus, que atinge mulheres grávidas e seus filhos, entre outras.
Como o jornalismo cobre a tragédia
O jornalista Caetano Manenti fez uma série de três reportagens para os portais Jornalistas Livres e Greenpace, publicada também no site Observatório da Imprensa, contando a saga dos moradores e alguns bastidores dessa tragédia ecológica e social.
"No caso de Mariana, apesar da devastação provocada pela ruptura das barragens da Samarco, das perdas em vidas humanas, do desastre ambiental sem precedentes, a imprensa nacional demorou para dar o destaque e a dimensão que o assunto merecia, segundo notou o Observatório da Imprensa, do decano Alberto Dines.
“Nem as primeiras imagens da televisão mostrando o lodaçal em que se transformou a cidade de Bento Rodrigues para que as principais empresas jornalísticas enviassem equipes e repórteres para o local do desastre.”
"Para piorar tudo isso, as empresas mineradoras fazem parte de um seleto time que, segundo as precisas palavras da professora Tatiana*, “nunca perdem as eleições no Brasil”. Como grandes doadores/investidores de campanhas, fica difícil saber o que é política mineral real e o que é força política das mineradoras em si." Basta dizer que o deputado, relator do novo código de mineração, em discussão há anos no Congresso, recebeu R$ 2 milhões de mineradoras para a campanha do 2º mandato na Câmara. "20 dos 27 deputados que compõem a Comissão que debate o novo código receberam dinheiro de mineradoras nas campanhas em 2014."
A destruição de vidas, do meio ambiente e da história
O rompimento da barragem da Samarco varreu do mapa vilarejos aprazíveis, do interior de Minas Gerais, que estavam no caminho do mar de lama que desceu das encostas. Matou 19 pessoas, incluindo os desaparecidos, deixando mais de 200 famílias desabrigadas e impossibilitadas de voltar para o lugar onde moravam. Esses moradores precisarão recomeçar uma nova vida, num novo lugar. Perderam não apenas parentes, amigos, animais de estimação, bens, valores; na lama sumiu também a história da vida deles. Dos resíduos sólidos que tomaram conta de vasta região, não nasce mais nada. O solo está definitivamente condenado.
Não bastasse tudo isso, a lama contaminada que desceu das barragens atingiu o Rio Doce e seus afluentes, correu por 800 km, acompanhando o leito do rio, até sua foz, no Espírito Santo, poluindo não apenas o Doce, mas as margens e as praias onde o tradicional rio deságua. No rastro, deixou milhares de moradores que pescavam, plantavam e criavam gado sem o seu sustento. Uma tragédia monumental. Uma crise de dimensões ainda não calculadas. Especialistas ouvidos pelo jornal Valor Econômico dizem que recuperação exige diagnóstico preciso e multidisciplinar, que leve em conta aspectos físicos, biológicos, hídricos e sociais. Não é algo para ser feito de forma açodada e sem planejamento.
"As Minas estão concentradas nas mãos de poucos. E os Gerais — o povo — ficam com a dor e a exclusão”. (Padre Geraldo Barbosa, de Mariana)Nesta edição, introduzimos a primeira parte do trabalho de Manenti, publicado em 18 de dezembro. A Parte 2 foi publicada em 21 de dezembro. O trabalho do jornalista se completa com uma terceira parte. Os link estão disponíveis no rodapé deste artigo, assim que a última reportagem for publicada nos sites. O autor visitou os locais atingidos pela catástrofe e outros onde a mineração é uma ameaça, em Minas Gerais. Destacamos alguns tópicos da reportagem, que julgamos marcantes nessa tragédia.
"Eram quase três e meia da tarde de 5 de novembro de 2015, um dia quente, como de costume na vida do vale, e seco, como tem sido este maldito 2015 no centro-sul de Minas Gerais. Depois deste momento, nada mais foi como antes. A barragem de rejeitos de minério do Fundão, com cerca de 55 bilhões de litros de lama espessa, rompeu-se sobre os 7 bilhões de litros de rejeitos, esses mais líquidos, da barragem de Santarém. A combinação de lama e água virou uma bomba sobre a terra seca. O mundo não acabou como pensou a senhora. Mas uma linda parte dele sim.”
“Do Fundão ao Oceano Atlântico, são quase oitocentos quilômetros de morte e tragédia, que expõem, em cada local, um novo problema de uma interminável lista: a exploração minerária em si, a segurança do trabalho de empregados terceirizados, a falta de planos de emergência, a dificuldade do acesso à água, a falta de respeito (e amor) pela natureza; o ancestral descaso com os direitos indígenas. Temas para reflexões inadiáveis.”
“A equipe dos Jornalistas Livres e do Greenpeace percorreu o trajeto de destruição, como numa viagem a um futuro indesejado (onde a natureza agoniza ou já é morta), e agora conta por que o desastre mineiro/capixaba antecipa como poderá ser o fim da linha de um país que, há cinco séculos, suga suas riquezas mais profundas sem se preocupar com quase nada: nem bicho, nem planta; nem rio, nem mar; nem escravo, nem pobre, nem índio."
Crise anunciada
“O Ministério Público mineiro já havia registrado preocupação com a Barragem do Fundão. As mais importantes pistas para entender o que ocorreu nas barragens da Samarco — empresa brasileira de propriedade da Vale e da anglo-australiana BHP Billiton — surgem em 24 de outubro de 2013. Aquela quinta-feira poderia ter salvo a quinta-feira do fatídico 5 de novembro de 2015. Na oportunidade, a tragédia foi anunciada em documento oficial, assinado pelo Ministério Público de Minas Gerais.”
Falha grave de prevenção
“Em outros trechos assustadores — e agora sabe-se, proféticos — o parecer do Ministério Público mineiro foi além. Pedia que três pontos fossem condicionantes para a revalidação da licença.
a) Realizar monitoramento geotécnico e estrutural periódico dos diques e da barragem, com intervalo máximo de um ano entre as amostragens.
b) Apresentar plano de contingência em caso de riscos ou acidentes, especialmente em relação à comunidade de Bento Rodrigues, distrito do município de Mariana-MG.
c) Realizar análise de ruptura (DAM — BREAK) da barragem, prevista para ser entregue à SUPRAM (Superintendência Regionais de Regularização Ambiental).”
A ironia do prêmio
“Longe de Bento Rodrigues, entretanto, a Samarco era uma empresa premiada por sua eficiência face à crise econômica mundial. Apenas quatro meses antes do acidente, em julho, a empresa recebeu, pela terceira vez consecutiva, o prêmio de “Melhor Empresa do Ano” na área de mineração, conferido pelo anuário “Melhores e Maiores”, da revista “Exame”, publicada pela Editora Abril.
“A percepção é de que a terra está sendo ferida de forma permanente pela mineração. Esse momento do rompimento da barragem foi o sangue, estancado durante muito tempo, jorrando Rio Doce abaixo”. (Pablo Dias, do MAB-Movimento dos Atingidos por Barragens)
O lucro acima de tudo
“Quanto à altíssima produtividade, basta ver os demonstrativos da empresa. Se, em 2009, a Samarco produziu 16 milhões de toneladas de pelotas de ferro, em 2014, comemorou a produção de 25 milhões de toneladas. Trata-se de um crescimento de 56% em apenas cinco anos, dos quais 19% apenas entre 2013 e 2014. O aumento de produção, é certo, gerou uma montanha a mais de rejeitos.
“Em 2009, a produção de rejeitos batia na marca de 13,7 milhões de toneladas. Em 2014, atingiu o recorde de 21,9 milhões de toneladas (crescimento de 60%, dos quais 33% apenas entre 2013 e 2014). E onde era armazenado o excesso de rejeitos? É a própria Samarco quem responde, em seu “Relatório Anual de Sustentabilidade 2014”:
“Na Samarco, todo o rejeito (materiais arenosos e lamas) gerado na etapa de beneficiamento do minério de ferro é armazenado em um sistema, composto das barragens de Germano e de Fundão e do empilhamento na Cava do Germano, na unidade de Germano (MG).”
Cenário de destruição
"Os caminhos que entrecortam o interior de Mariana e Ouro Preto têm um cheiro estranho, forte, de poeira no ar. O asfalto é avermelhado, do minério que despenca dos caminhões. Os morros têm aquele aspecto fatiado, próprio de uma região recheada de minérios, intensamente devastados. Só nos limites do município de Mariana, são 24 barragens registradas. Umas mais, outras menos, são motivos de temor para a população há muitas décadas — e ainda mais agora."
Indenizações no Brasil são leves para a tragédia
"Além do custo da barragem, também é possível quantificar as multas por desastres ambientais. Até o início de dezembro, a Samarco já havia sido multada em R$250 milhões pelo o IBAMA e em R$1 bilhão em termo de compromisso preliminar com o Ministério Público Federal. Além disso, a Justiça também bloqueou R$ 300 milhões da conta da empresa. O Ministério Público de Minas Gerais, no começo de dezembro, ingressou com uma Ação Civil Pública contra a Samarco, a Vale e a BHP. O MPMG pede que a justiça cobre R$200 mil por família que não seja transferida para casa alugada até o Natal. Além disso, o MPMG quer que a verba mensal para cada família seja elevada de um salário mínimo para R$1,5 mil, mais 30% para cada dependente. A ação ainda cobra indenização integral de todos os bens perdidos, como casas, comércios e carros.
"Os valores podem ser considerados baixos quando comparados, por exemplo, à multa do governo americano sobre a British Petroleum pela catástrofe ambiental causada pelo vazamento de petróleo ocorrido no Golfo do México em 2010. Pelo acordo, a empresa terá de pagar US$ 20,8 bilhões para os estados de Alabama, Flórida, Louisiana e Mississipi. Alguns ambientalistas brasileiros dizem que, aqui no país, as multas são tão brandas que correr os riscos de pagá-las é parte de uma política de economia."
Para ter um retrato mais completo da tragédia, com uma pequena dimensão do que representa para aquelas comunidades e o meio ambiente, convém ler a íntegra das reportagens de Caetano Manenti, publicada em três partes no site Observatório da Imprensa.
Do lucro à lama: Uma viagem de Mariana ao fim do mundo – Parte 1
Do lucro à lama: Uma viagem de Mariana ao fim do mundo - Parte 2
Do lucro à lama: Uma viagem de Mariana ao fim do mundo - Parte 3
*Tatiana Ribeiro de Souza, professora da Universidade de Ouro Preto e doutora em direito internacional público.
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