A cada ano, na época do Natal, insistimos que, apesar de 25 de dezembro ser o aniversário de Jesus, segundo consagrou a fé cristã, na medida em que o tempo passa essa evocação acaba engolida pelo mercantilismo. Não bastasse o culto ao deus do consumo, o Natal deste ano chega agravado pelas crises, inclusive no Brasil. A festa do congraçamento, portanto, para milhões de pessoas não passa de uma miragem.
Com o passar do tempo, Natal talvez tenha se tornado apenas uma alegoria semântica que lembra “nascimento”. Assumiu definitivamente o sentido de oportunidade de negócio e não de renovação, união, congraçamento. O comércio e a indústria, seja no Brasil ou no exterior, aguardam a data para tentar reverter perdas em anos de crises. E Jesus acaba apenas como pano de fundo dos presépios que evocam um nascimento ocorrido há mais de 2 mil anos, mas que as crianças mal sabem do que se trata. A data se tornou mais importante do que o acontecimento histórico ou a tradição que lhe deu origem.
A cada ano piora essa sensação. A ponto de crianças e adultos, sem falar nas empresas, mentalizarem Natal como a oportunidade de ganhar alguma coisa de alguém. Em alguns países, como Portugal, surgiu um movimento “Não ao consumo desenfreado no Natal”. Até os consumidores cansaram dessa mercantilização da maior festa da Cristandade.
Com o mundo vivendo uma das maiores crises econômicas dos últimos anos e convulsões se disseminando por vários países, talvez o Natal seja uma boa ocasião para repensarmos nossos conceitos em relação à nova religião que o capitalismo teima em nos impingir. Sem a participação da maioria dos habitantes. Até porque milhões de pessoas no mundo, neste momento, mal têm tempo de saber que é Natal, vítimas de uma diáspora que os priva de ter um lar e até mesmo uma família.
Apenas na Síria, um milhão de refugiados não possuem um lar para comemorar o Natal. Outros milhares foram escravizados pelos grupos terroristas que tomaram conta do Oriente Médio, África e Ásia, sem falar nos traficantes do México, Colômbia e Brasil, que dominam territórios, semeando o terror e o medo.
As catedrais do consumo
Por oportuno, reproduzo aqui o texto publicado em anos anteriores, até porque o nascimento de Cristo, a festa da família e da confraternização acabou realmente se transformando, lamentavelmente, numa grande feira livre.
No meio do shopping, empurrada pela multidão, que se acotovela para disputar uma mercadoria em promoção, uma criança é espremida contra uma prateleira de brinquedos. Ela é mais uma compradora potencial, fisgada pela indústria do consumo ao sentir na pele essa roda viva de sedução, que transforma qualquer comemoração festiva em cifrões. Perguntem para essa criança, que aniversário ela irá comemorar dia 25? Certamente não saberá.
É isso mesmo. O nascimento de Cristo, o aniversário de Jesus virou apenas um detalhe. A civilização do século XXI levou ao extremo o ritual de transformar tudo em mercadoria. Natal é apenas a senha para que a publicidade invista milhões na conquista de consumidores, seduzidos pelos encantos das ofertas.
Cada vez menos pessoas associam Natal à maior festa da Cristandade. Comemorado pelos mais diferentes povos, do Ocidente ao Oriente, não importa a religião, não há quem fique indiferente às festividades do Natal. Mas os efeitos musicais e de luzes, embora mexam com o emocional, não estão lá para lembrar a chegada do Messias. Mas para encantar consumidores que ainda relutam em resistir às tentações.
Falar em festa do nascimento de Cristo poderia soar estranho para essa criança, mesmo que seus pais a tenham criado com presépio, árvore de Natal, canções religiosas e coisas do gênero. Só que o som da publicidade e da indústria do consumo é bem mais sedutor. E é isso que ela ouve.
O chamado espírito de Natal só existe como obrigação utilitária, de comprar presente, viajar, mesmo à custa de filas e atropelos, adquirir supérfluos e reunir a família numa ceia. Com muita bebida, de preferência. Quase ninguém se dá conta de que nessa noite se comemora um nascimento que, para os cristãos, mudou a história da Humanidade. E que vai muito além de corridas às compras, engarrafamentos, apertos, descontos, sorteios, shoppings e bebedeiras. Mas quem se lembra disso?
Por que o Natal perdeu o encanto de anos passados, quando não havia a febre do consumismo desenfreado. Meninos, em sua maioria, contentavam-se em ganhar uma bola de borracha, um carrinho de madeira. Meninas sonhavam com uma boneca, de qualquer tipo. Podia ser de pano. E que festa faziam esses presentes, mostrados para os amigos no dia 25. Dormia-se cedo. Se as crianças ficassem acordadas até muito tarde, o Papai Noel (embora ninguém acreditasse), poderia passar ao largo e não deixar o presente. A festa do dia 25 era de Cristo, o aniversariante. Melhores roupas, melhores sapatos, todos para a igreja. Nós éramos meros coadjuvantes.
Hoje os presentes são impostos. E os papais-noéis andam pelo shopping e não pelas casas. Chegam de helicóptero, patrocinados por grandes marcas, e nem sabem o que são chaminés. No trabalho, inventou-se a troca de presentes na festa do amigo secreto ou oculto, com preço pré-estabelecido. Importa mais quanto o presente custa, do que o valor simbólico. Corre-se o risco de sortear como “amigo” exatamente aquele com quem passamos o ano com diferenças profissionais.
Os filhos impõem presentes aos pais, mesmo que durante o ano tenham feito pouco para merecê-los. Não importa. Aqui vale menos o mérito do que o ritual. Os pais, mesmo com o orçamento apertado, fazem mais uma dívida para comprar presentes. Para não fazer feio ou para não deixar o filho psicologicamente abalado perante os vizinhos. Bola? Boneca? Não. Bicicleta, Play Station, telefone celular. Por que não um iPhone ou iPad? Estão na moda. Quem sabe um carro? Não apenas um, mas vários presentes. Afinal, pode-se pagar em até 80 meses. E ainda colaborar com o governo para manter a economia aquecida.
Ou seja, crianças exigem e concorrem com adultos no preço e na tecnologia. Não aguardam um presente, impõem. É uma disputa pelo produto mais moderno e diferente, não importa quanta custa. De preferência o da moda. Afinal, para que existem as promoções? Natal é sinônimo de promoção. É a hora de comprar. Quanto mais supérfluo, melhor. Pois todo mundo compra. Aqui também funciona o efeito manada.
A idéia de que precisamos comprar e ostentar para sermos felizes é falsa. Já existem estudos sobre consumo e felicidade que mostram: mais valem experiências, como viagens, shows, cursos, passeios do que acúmulo de bens materiais. Ou seja, aproveitar mais, com menos. O que fortaleceria nossos vínculos sociais e contribuiria para a felicidade. É por isso que nos lembramos com saudades das boas reuniões festivas, seja de Natal, Ano Novo, aniversários, quando os encontros com parentes e amigos foram mais importantes do que presentes caros de que não nos lembramos mais.
O mundo capitalista transformou os shopping-centers em catedrais do consumo. Conseguiram transferir as comemorações do aniversário de Jesus para as caixas registradoras, regadas a cartão de crédito e cheques pré-datados. Ou seja, Jesus aniversaria, mas quem ganha presente são as indústrias, o comércio, a publicidade. Enquanto isso, o chamado espírito de Natal é apenas um mote para criar belas peças publicitárias. Embora convidadas para o aniversário, as crianças realmente estão preocupadas com outras coisas. Não sabem o que aconteceu na noite de 24 para 25 de dezembro. Jesus, possivelmente, irá comemorar o aniversário cada vez mais sozinho.