“O que assistimos nas últimas duas décadas é uma espécie de regressão a esse período de autêntica barbárie” (Elísio Estanque, sociólogo português).
Editoriais, artigos, análises, redes sociais repercutiram nos últimos dias a violência que toma conta do país. Pais não defendem os filhos. Ao contrário, são os carrascos. Filhos atacam pais e avós em surtos psicóticos. Alunos matam professores. Manifestantes vão às passeatas e soltam rojões fatais. E a população, insuflada pelas redes sociais, resolve fazer Justiça com as próprias mãos. Afinal, para onde vamos?
A violência está no ar, poderia anunciar o canal de TV. Dos videogames aos seriados; das novelas aos filmes. Proibiram-se armas de brinquedos como se fosse a panaceia para reduzir a violência. Presenteiam-se os filhos com videogames, onde a diversão menor é matar, com o maior número de tiros (porque mais pontos), quem passa na rua. Os revólveres antigos de brinquedo, imitando os dos filmes de farwest, sucesso nas décadas de 1940 a 1960, com os quais a geração mais velha brincou, eram inocentes bolinhas de gude perto do que as crianças assistem e praticam hoje nas telas. Com a vantagem do high definition.
A historiadora americana Barbara Tuchman, laureada com o prêmio Pulitzer, é autora do instigante livro de história – A Marcha da Insensatez – De Troia ao Vietnã. Ela analisa com maestria quatro conflitos históricos - a Guerra de Troia, a reforma protestante, a independência dos Estados Unidos e a Guerra do Vietnã. Expõe a impotência da razão ante os apelos da cobiça, dos interesses individuais e políticos, com as consequências nefastas que os quatro episódios causaram nas populações que viveram esses momentos históricos, em diferentes épocas.
O Brasil vive hoje alguns episódios que parecem uma marcha da insensatez. Como teve tantos no passado. Basta lembrar, só para ficar nos últimos séculos, as revoltas internas do século XIX, que ceifaram milhares de vidas dos brasileiros, em lutas contra o Império ou no limiar da República: Farroupilha, Guerra do Paraguai, Revolução Federalista, Contestado, Canudos, as ditaduras do primeiro primeiro governo Vargas (1930-1945) e, depois, a militar (1964-1985).
Após 1985, com o fim do regime militar, vivemos até agora o período mais longo de plena democracia na história do país, sem golpes, com eleições sucessivas para presidente e governadores. Representa uma avanço. Mas, por que, desde o ano passado, começam a se levantar vozes, cada vez mais fortes, questionando o país, que a propaganda oficial vende, com o consequente crescimento da espiral da violência?
A insensatez está nas ruas
Sociólogos, jornalistas, cientistas políticos especulam sobre o que estaria levando o Brasil neste início do século XXI para um perigoso patamar de violência, semelhante ao que assolou outros países, principalmente na América Latina, como Colômbia, México, Nicarágua, Costa Rica, Venezuela, Honduras. A vida, se já tinha pouco valor nas periferias das grandes cidades, passou a ser desprezada, com muita facilidade, em qualquer lugar. Até mesmo dentro das próprias famílias.
A falta de valores sólidos nas relações familiares parece ter migrado para as ruas, as repartições públicas, as empresas. E isso não é bom para a democracia. Vivemos uma crise de valores, principalmente ética, respeito ao direito dos outros e ao país, ausência de autoridade, desprezo pela escola, a cultura?
A morte de um menino de 11 anos, no Rio G. do Sul, chocou o país. Bernardo não conseguiu apoio nem proteção, primeiro de quem tinha obrigação de fazê-lo, pai, madrasta, parentes. Depois, da polícia, da Vara da Infância e da Juventude, da escola, dos professores, do Ministério Público. Na falta ou incapacidade da família, esses e outros órgãos públicos não tiveram discernimento de perceber que ele precisava de ajuda, quando poderiam e deveriam ter sido o seu refúgio.
Bernardo pediu ajuda, como aquela estudante do Canadá, Amanda Todd, em 2012. Ela foi ao You Tube expor o seu grito de socorro, ante o bullying sexual que sofria de um maníaco nas redes sociais. Como tinha vergonha de falar para a família, faltou-lhe também o apoio da escola, de professores e amigos. Acabou se suicidando. O menino gaúcho, que já sofria a perda da mãe prematuramente, por suicídio, teve o azar de não ter amparo no momento mais difícil de sua vida. E os verdugos dormiam com ele, na própria casa.
Em Brasília, alguns dias depois da morte de Bernardo, dois meninos, de 11 e 15 anos, assassinaram um professor, 33 anos, em tentativa de assalto. O de 11 anos volta para casa. Carregará na história de vida um assassinato. O de 15 vai cumprir uma medida “socioeducativa”, que pouco tem de "educativa". Daqui a um ou dois anos deverá ser solto. Provavelmente, ambos voltarão para a vida nas ruas.
O crime cometido já sinaliza a provável desestruturação familiar, ao não conseguir impedir uma vida tão precoce de crimes; a rua, muito provavelmente, será o destino deles, infelizmente. É o círculo vicioso que alimenta a mão de obra do tráfico, das quadrilhas, da delinquência e acaba lotando nossos presídios. Do lado do professor, mais uma família no país que chora a perda de um jovem no início da vida profissional. Tinha acabado de ser aprovado em concurso da polícia de Florianópolis. Rotina a que se acostumou a população, que mora na periferia das grandes cidades, onde os assassinatos fazem parte do cenário cotidiano.
Depois da rotina de balas perdidas que matam inocentes; quadrilhas e traficantes, que cometem atentados contra policiais e queimam ônibus; viatura policial que arrasta uma vítima ferida; assaltantes que matam à queima roupa um menino de 6 anos, porque chorou na hora do assalto, pensamos que tínhamos chegado ao limite. Mas bastou um boato, com uma pseudo-denúncia nas redes sociais, para um grupo de malfeitores (que outra palavra poderia ser usada?), escolher uma vítima ao acaso, e resolver fazer justiça com as próprias mãos. E não foram duas ou cinco pessoas, mas, calcula-se cerca de 100 pessoas.
O "justiçamento" da turba, alguns sem nem saber do que se tratava, resultou no assassinato covarde e brutal de Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, mãe de dois filhos. Foi linchada porque, ao dar uma banana para um menino pobre, o ato foi associado à tentativa de sequestrá-lo. Havia um site e comentários nas redes sociais com retrato falado de uma suposta “bruxa” na região, que estaria sequestrando crianças para magia negra.
O ato assume ares de barbárie como se a verdadeira suspeita, se realmente existe, também pudesse ser justiçada. A fúria de dezenas de pessoas se assemelha, nos tempos atuais, às disputas tribais ou religiosas, em alguns países de fanatismo religioso ou político. Ou aos atos de traficantes nas favelas, que criaram um tribunal de julgamento de membros de quadrilhas rivais e até de sequestrados, como aconteceu com o jornalista Tim Lopes, da Rede Globo.
Fabiane estava no lugar errado, na hora errada. Não apareceu ninguém para tentar salvá-la. Ou se apareceu, foi incapaz, diante da fúria de uma centena de pessoas. Até a polícia chegou atrasada. Esse episódio talvez traga um recado para os governos e tantos órgãos burocráticos e ONGs, encarregadas de proteger o cidadão. Atingimos o limite. O que será feito pelos órgãos de segurança? E são tantos na burocracia estatal.
O linchamento de Fabiane, divulgado com destaque pela mídia, inclusive internacional, é apenas o desfecho de ensaios anteriores de justiçamento. Grupos de milícias privadas ou mesmo familiares de vítimas, há dois meses, amarraram acusados de roubo em um poste ou tentaram bater em outros pelas mais diversas acusações ou suspeitas. E não foi a primeira vez que alguém acusado, mesmo culpado, foi linchado no país.
Analistas dizem que a inclinação para o justiçamento popular é estimulado pela descrença nas instituições. As pessoas não crêem mais que o Estado, representado por ministérios, secretarias, Polícia Federal, polícias militares e civis, Judiciário, Ministério Público, consiga fazer Justiça e, com isso, coibir a violência, como acontece nos países desenvolvidos. Então assumem o papel de juízes e carrascos, como no México, em relação aos traficantes que dominam territórios. Lá, milícias privadas, com o beneplácito do governo, assumiram a defesa das cidades e da população, porque perderam a confiança na capacidade do Estado lhes dar segurança.
No Brasil de hoje, nem a polícia consegue mais conter a violência, encurralada e impotente, até mesmo nas UPPs do Rio de Janeiro, um bom programa de segurança, mas já ameaçado, ou nas delegacias do interior, inclusive no Norte e Nordeste. Basta recordar como representa uma afronta ao cidadão paulista ou fluminense as polícias locais não terem capacidade de acesso a determinadas favelas, totalmente dominadas e controladas por quadrilhas de traficantes. Eles determinam feriados. Impedem o acesso de serviços públicos e outros benefícios para o consumidor.
A ocupação da Favela da Maré por militares pode até dar uma demonstração de força para o tráfico e funcionar como marketing de segurança para a Copa do Mundo, mas do ponto de vista social e político representa o fracasso ou a derrota dos governos em manter a ordem. Militares só deveriam assumir a segurança pública em último caso, ataque terrorista, ameaça ao país, por algum inimigo externo, ou em casos de calamidades públicas graves, com ameaça à vida.
As causas da violência
Pode-se escrever páginas e páginas sobre a gênese desse fenômeno. Mas não há dúvida de que o mundo mudou. Alguns atribuem à desagregação da família. Há 50 ou 60 anos, por exemplo, as crianças eram criadas e educadas com pelo menos três grandes referências institucionais: a família; a igreja e a escola. O mundo era muito limitado e as comunicações precárias. Havia violência no Brasil? Sim, mas em proporções bem menores. Não havia, como é comum hoje em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, a permanente "sensação de insegurança". Sensação exatamente contrária, ao que se percebe em Nova York, Londres, Praga, Amsterdam, San Francisco, apenas para citar algumas grandes cidades.
Hoje, para a maior parte da juventude brasileira, igrejas e escolas deixaram de ser referência. Restou a família, em processo de desagregação, pelos novos tipos de relacionamentos. Ela também está em crise. Para boa parte da juventude, empresas de tecnologia como Apple, Microsoft, Google ou marcas ou grifes famosas de roupas têm mais importância ou valor do que igrejas ou escolas. Até o time de futebol tem mais força.
Triste paradoxo. O progresso, a urbanização, as comunicações, as descobertas dos últimos anos, não há dúvida, melhoraram a vida para grande parte dos habitantes da Terra. Mas, apesar de alguns cientistas sociais admitirem que o mundo de hoje é mais “pacífico” do que o do passado, talvez porque sem grandes conflitos bélicos, envolvendo grandes potências, no Brasil o progresso trouxe junto a semente da violência.
Por aqui, o fenômeno da violência coincide com um período de pleno emprego e migração de boa parte da população para patamares melhores de renda. Por que, então, esse mal-estar? Para o filósofo e autor do livro "Violência: seis reflexões laterais", Slavoj Zizek, "é um paradoxo. Não tenho resposta completa para isso pois cada país tem suas pecualiaridades históricas, mas um erro muito comum é pensar que a violência social emerge quando a situação está muito ruim e o sofrimento de não se poder mais viver vira revolta. Não é assim. Se você olhar para a maioria das rebeliões e revolas pelo mundo elas ocorrem quando a situação está ficando melhor. São mudanças graduais que em dado momento explodem em esperanças de transformação e posteriormente terminam em expectativas frustradas."
Alguns estudiosos do mundo virtual atribuem também a violência à intolerância que grassa na Internet. Conteúdo intolerante com minorias, sectarismo político, racial e religioso são temas do livro “Viral Hate – Containing its Spread on the Internet”, de Abraham Foxman e Christopher Wolf (Palgrave Macmillan, 2013). Ela seria um elemento catalisador de ódios e agressões que acabam arrebanhando adeptos e levam grupos ativistas a praticarem bullying virtual, com ataques online aos internautas, ou atos de violência real nas ruas, mediante mobilização pelas redes. Como tem acontecido no Brasil, desde o ano passado.
Cada vez pior
No Brasil, a falta de pulso ou autoridade dos governos, tanto federal, quanto estaduais, em conter manifestações e protestos violentos, interrupções de rodovias e depredações, seguidos de atos de vandalismo até mesmo contra pessoas, acabou estimulando grupos das mais variadas estirpes ou ideologias a fazer o que bem entendem. Transformam as rodovias ou ruas em verdadeiro caos durante a semana. Por que há poucos atos de protestos nos feriados e fins de semana? Porque o objetivo é exatamente tumultuar a vida das pessoas e incomodar os governos.
A Copa do Mundo serve de álibi para se protestar contra qualquer coisa, do aumento salarial à falta de moradia; do atropelamento à falta de ônibus. Em qualquer lugar do país, não importa o tamanho da cidade, virou rotina grupos de moradores, alguns manipulados por outros grupos de interesse, incendiar pneus e lixo para interromper rodovias federais ou estaduais. O cidadão comum, que já anda irritado com a falta de transporte, a insegurança, a burocracia, reage a acaba partindo para a violência.
E a polícia, em geral, tem pruridos, limites e até mesmo incapacidade operacional para reprimir. Corre o risco de ser acusada de reacionária. Pecado mortal, num governo de viés esquerdista. A liberdade de pessoas ou grupos acaba quando interfere na liberdade dos outros. Qual o direito que certos grupos, em geral patrocinados por movimentos sociais, sindicatos, movimentos ativistas, ONGs e outras associações, têm de interferir no direito inalienável das outras pessoas de ir e vir? Alguns são até patrocinados por empresas do governo. E o que faz o Estado que não assume o seu papel para garantir esse direito?
Da violência nas passeatas e no trânsito para a violência pessoal foi um passo. Banalizou-se o crime, a ponto de ser comum garotos de 11 anos andarem armados, não hesitando em atirar para roubar. Essa marcha da insensatez brasileira encontra respaldo na impunidade. Vários grupos defendem o direito dos presos e condenados. Muito poucos, o direito das vítimas, ou melhor, dos herdeiros das vítimas, de quem pouco nós ouvimos falar, depois dos crimes, mergulhados que estão na sua dor e na busca da sobrevivência, que em geral se torna dramática. Vez ou outra mães corajosas formam associações e correm atrás da Justiça para os assassinos de seus filhos serem presos ou julgados. A polícia os encontra, mas a Justiça é lenta. A quantidade de crimes também acaba trazendo caos aos tribunais.
O país vive uma crise em cadeia. O descaso com os serviços públicos, a corrupção, o patrimonialismo, os interesses políticos dos grupos que dominam o país se sobrepõem aos interesses do público que trabalha e paga imposto. A irritação se transforma em manifestação; esta se transfigura em ato de violência; ou se contemporiza, finge-se que está tudo bem, instituindo o império do caos; ou se reprime e prepare-se para receber saraivada de críticas dos defensores dos “vândalos”, que já fazem plantão nas delegacias para libertá-los.
Não bastassem essas crises, o processo é ainda pior; vêm os prejuízos a empresários com a queda nas vendas (uma greve de ônibus de 11 dias em Porto Alegre, no início do ano, reduziu as vendas do comércio em 30%, em um mês); ameaça e depredação no patrimônio privado e público; instituições públicas paradas e empregados chegando atrasados ao serviço. Imaginem o custo dessa crise sem fim. Podemos afirmar hoje que o país não tem paz. Porque nenhum cidadão pode assegurar com tranquilidade que chegará com certeza ao destino pelos meios de transporte normais. Sempre tem um "depende"...
O nível de abuso da impunidade chegou a tal ponto, que em Brasília, em março deste ano, um jovem assassinou friamente, um dia antes de completar 18 anos, com um tiro na cabeça, a ex- namorada de 14 anos. Provavelmente, premeditou o crime para ficar impune. Ou cumprir a famigerada “medida socioeducativa”.
Como disse o consultor político Gaudêncio Torquato, em recente artigo no jornal O Estado de S. Paulo: “Os valores tradicionais fenecem. Os conflitos se expandem. Encolhe-se o “capital social”, conceito que, na visão do cientista político Samuel Huntington, é a equação da confiança e do respeito, dos direitos e do convívio harmonioso entre grupos. Tal leitura, que se aplica aos mais diferentes Estados democráticos, ganha ênfase por aqui em função do poder corrosivo que, nos últimos tempos, devasta a paisagem institucional.”
E conclui: “O espírito do nosso tempo é de trevas!” Apesar do oba-oba da Copa do Mundo e das infinitas bobagens que grassam, em torno do tema, na publicidade divulgada pela mídia, é o que a maioria dos brasileiros também começa a achar.
Outros artigos sobre o tema
Populismo e violência - Editorial de "O Estado de S. Paulo"
Assassinos! - Roberto Romano
O Brasil está com ódio de si mesmo - Arnaldo Jabor
Pedrinho, Bernardo e o espírito do nosso tempo - Gaudêncio Torquato
Ela está no meio de nós - Ivan Marsiglia
Seres sem rumo - José de Souza Martins