“A General Motors e a Malaysia Airlines estão, ambas, em apuros, mas uma está dando uma lição de como lidar com uma crise fatal, ao passo que a outra oferece uma aula de como não fazê-lo. Há um contraste gritante no comportamento, e na capacidade de lidar com críticas públicas, por parte de Mary Barra, presidente-executiva da GM, e Ahmad Jauhari Yahya, presidente-executivo da Malaysia Airlines - embora Mary tenha uma tarefa mais simples.”
Essa é a interpretação do colunista John Gapper, em artigo publicado nesta quarta-feira (26), no Financial Times. Segundo Gapper, “as duas empresas defrontam-se com o mais crítico problema empresarial - como reagir, quando clientes morrem ao usar seu produto ou serviço”.
No caso da GM, uma crise menos divulgada na mídia internacional, as vítimas de acidentes com automóveis foram, até agora confirmados, 12 motoristas ou passageiros de veículos compactos, que apresentaram problemas, ocorridos nos Estados Unidos.
O mais grave dessa crise é que desde 2003 a empresa recebeu queixas de motoristas sobre o problema, inclusive com relato de mortes. A empresa não levou a crise a sério, no início, e foi constantemente interpelada pelos órgãos de segurança americanos. Hoje, após pressões dos fiscalizadores a empresa admite que empregados sabiam do problema desde 2004.
A Malaysia Airlines enfrenta a pior crise que uma empresa aérea pode sofrer: o passivo de 239 vítimas presumidas, passageiros e tripulantes do voo MH370. Mas, neste caso, a empresa está ainda diante do pior cenário, talvez jamais imaginado nos treinamentos de simulação de crise de uma cia. aérea, o desaparecimento do Boeing 777 por quase 20 dias, o que torna a crise, sob qualquer aspecto, muito mais difícil de administrar.
A crise da GM e os erros de gestão
Segundo Gapper, “Mary Barra, CEO da GM desde janeiro, até agora reagiu de forma exemplar. Ela assumiu responsabilidade pessoal, admitiu que a GM tem culpa e pediu desculpas; enfatizou sua tristeza ("como mãe, tenho minha própria família") e prometeu não só corrigir procedimentos como usar a crise como um marco de mudança para a GM.” Ou seja, ela foi indicada como primeira mulher a dirigir uma montadora internacional do porte da GM talvez e, muito certamente, por causa da crise. Não tinha outra opção, a não ser enfrentá-la.
Mas a GM está longe de ser considerada, como evoca o articulista, um modelo na gestão dessa crise. Nem foi bem esse o entendimento das autoridades americanas que fiscalizam empresas, como a GM, quando o produto causa acidente ou mortes no consumidor. A GM minimizou essa crise, a exemplo do que fez a Toyota em 2010, e está sob investigação de duas Comissões do Congresso americano e do Departamento de Justiça.
A princípio, a GM não admitiu que seus carros pudessem ter um problema sério e se negou a fazer recall. Alguns modelos desligavam, quando em alta velocidade, provocando o acionamento do airbag com consequências desastrosas. Os motoristas, ao perderem o controle, foram vítimas de acidentes fatais, pelo menos em 12 casos comprovados. Mas o problema, especula-se, nos EUA, está ligado a outras 303 mortes, que estão sendo investigadas. Pode se tornar, portanto, uma crise grave. O que a CEO da GM faz agora, tardiamente, é admitir que a empresa deve explicações e reparações.
Nesta semana, segundo anuncia a BBC News, a GM está acrescentando mais 824 mil carros no processo de recall, pelo risco de apresentarem o mesmo problema. São modelos 2008 a 2011, somando-se aos 1,6 milhão de carros anteriores a 2007, embora a empresa desconheça acidentes fatais com os modelos agora indicados.
Na próxima semana, a CEO da GM, Mary Barra, agendou depoimento no Congresso americano para explicar por que a GM não fez o recall dos carros defeituosos quando o problema apareceu. Ou seja, o cenário não é tão tranquilo para a GM, como admite o articulista britânico.
A polêmica do SMS em caso de mortes
O CEO da Malaysia Airlines, Ahmad Jauhari Yahya, estava no comando quando foi cometido o erro, segundo o articulista: “Algumas famílias foram informadas sobre as mortes por mensagens de texto. Após enfatizar, em uma declaração, ter reagido: "como pai, como um irmão, como um filho", ele utilizou um discurso empresarial padrão e defensivo, em entrevista à BBC Radio. Qualificando as críticas como "injustas", ele insistiu em que sua companhia aérea tinha "se mobilizado além do que considero um cenário padrão".
Ao se defender do tiroteio por ter enviado SMS aos parentes, ele declarou: “A Malaysia Airlines não apenas enviou um SMS. A mensagem foi transmitida a todas as famílias face a face pela nossa cúpula de gestão nos hotéis. Chamadas de SMS e telefone foram feitas, para aqueles que não estavam nos hotéis, por meio do nosso centro de apoio familiar. Nós queríamos garantir que as famílias fossem informadas através de todos os canais”.
Ainda segundo Gapper, "Muitíssimo obrigado" seria a resposta mais branda de alguém que tenha perdido um ente querido no que nada teve de "cenário padrão". Parentes de passageiros do voo MH370, incentivados tacitamente pelo governo chinês, protestaram diante da embaixada da Malásia em Pequim. Uma tragédia aeronáutica converteu-se em um desastre diplomático e empresarial.”
Há um tanto de exagero nessa crítica do autor do artigo. É natural, diante da dificuldade de notícias, que os parentes protestassem, principalmente porque os responsáveis pelas informações eram de outro país, com quem a China não mantém relações mais cordiais. Daí se entender os protestos, principalmente na China, país que usualmente reprime esse tipo de manifestação.
A crítica do articulista do Financial Times também deve ser contextualizada. Não há como comparar a crise da GM com a da Malaysia Airlines, tanto pela dimensão internacional, quanto pelo número de vítimas. Acidentes aéreos de grandes proporções causam comoção internacional. Chamam a atenção.
No último domingo (23), um barco com mais de 100 pessoas naufragou no Lago Albert, entre Uganda e República do Congo, na África. Todos os passageiros estão desaparecidos. Não se sabe nem quantos morreram, porque não há controle. E a notícia não passou de um rodapé na maioria dos jornais e noticiários de TV internacionais. Já o acidente da Malaysia não sai das manchetes há 20 dias.
Crises e o perfil do CEO
Para o articulista, o contraste entre a atuação da CEO da GM e o executivo da Malásia “deve-se, em parte, ao evidente abismo de personalidade e habilidade entre Mary e Ahmad. O fato de a CEO da montadora ser uma mulher ajuda - uma "mãe" é mais simpática do que um "pai", e o recuo de Ahmad, assumindo uma abrasiva postura de macho alfa evocou a resposta de Tony Hayward, ex-CEO da BP, após o desastre com a plataforma Deepwater Horizon, em 2010”, no Golfo do México.
O autor do artigo lembra uma infeliz declaração do CEO da BP, em abril de 2010, quando do vazamento de petróleo no Golfo do México, proveniente da explosão de uma plataforma, quando pressionado pela imprensa. “Eu estou cansado e preciso voltar para casa”. Ele morava na Grã-Bretanha e estava há 15 dias nos Estados Unidos. Ele dizia isso à mídia, enquanto milhares de pescadores protestavam por perderem o sustento, em decorrência do desastre ecológico da petroleira, e os corpos dos 11 operários mortos na explosão continuavam desaparecidos.
Essa interpretação do articulista do Financial Times também precisa ser relativizada. Não há nos estudos sobre Crisis Management, pelo menos do nosso conhecimento, nada que comprove um executivo ser mais eficiente na gestão da crise por ser homem ou mulher, como se o sexo pudesse dar esse condão de ter aquele sentimento considerado fundamental quando uma corporação tem vítimas fatais: “compassion”.
É uma visão distorcida e empírica. Existem CEOs - homens e mulheres - preparados e despreparados para esse momento. O que faz a diferença é quanto um executivo se prepara para enfrentar situações adversas nas empresas, e quanto detém daquelas qualidades consideradas fundamentais para esse momento: humildade, proatividade, comunicação franca e transparente, respeito aos atingidos pela crise e capacidade de tomar decisões sob grande pressão.
Segundo Gapper, “Mary também está em melhor posição do que Ahmad devido a acasos. Ela dispõe de argumentos mais fortes, que até agora manipulou com habilidade. Ele está em posição lamentável, apesar de a GM ser, evidentemente, culpada, ao passo que a Malaysia Airlines talvez não seja. O voo MH370 envolveu um Boeing 777 com motores Rolls-Royce e a aeronave pode ter se incendiado, ter sido sequestrada ou muitas outras coisas.”
“Em primeiro lugar, Mary tem certezas. As mortes relacionadas com a GM tiveram uma causa - uma falha evidente na ignição do Chevrolet Cobalt e de outros compactos da GM, que pode ser sanada. O problema também já foi, essencialmente, resolvido, ainda que a GM tenha tido de recolher 1,6 milhão de carros e possa ser alvo do crivo político e de processos na justiça movidos por parentes das pessoas que morreram. A GM sabe o que precisa fazer.”
“A Malaysia Airlines defronta-se com o equivalente ao vazamento no poço da BP. A companhia sequer encontrou a aeronave e os investigadores do acidentes estão longe de atribuir-lhe uma causa. As notícias vazam aos poucos, criando um ambiente de especulação e a suspeita de que a aérea ainda está escondendo coisas.” Pelo menos essa é a suspeita dos parentes e motivo de revolta, na comoção pela espera de notícias concretas sobre o que aconteceu.
"Investigadores de acidentes geralmente têm condições de separar o trigo do joio atrás de portas fechadas, mas isso - no caso da Malaysia - está acontecendo publicamente. Existe um tal vazio de informações, que eles estão sendo obrigados a liberar na medida em que já descobriram", diz Matthew Greaves, chefe do centro de segurança e de investigação de acidentes da Universidade de Cranfield.
Ou seja, quem controla as informações é a própria empresa, até porque o acidente da Malaysia, na forma em que se presume tenha acontecido, ocorreu em região de difícil acesso e sem o escrutínio público e próximo dos parentes e da mídia. Mas é um controle relativo e baseado na opinião de terceiros. O máximo de especulação que apareceu ficou por conta de especialistas em aviação e centros de controle aeroespacial.
Para Gapper, “Em segundo lugar, a GM tem autoridade. A companhia está sendo investigada e o Departamento de Justiça dos EUA poderá acusar a fabricante de automóveis de fraude, se for concluído que a montadora ocultou uma falha da qual tinha conhecimento, quando o Cobalt foi lançado em 2005. Mas Mary tem autonomia suficiente para posicionar-se publicamente e assumir o comando.”
"Se você não se comunicar de forma clara e frequente, alguém fará isso por você", diz Shuba Srinivasan, professor de marketing na Universidade de Boston. "Ao assumir uma postura pessoal, ela mudou a narrativa: do recolhimento de veículos à maneira como estava lidando com isso."
“Infelizmente algo deu errado em nosso processo neste estágio e coisas terríveis aconteceram”, explicou Mary Barra aos funcionários da GM em um vídeo publicado na internet, no último dia 18, acrescentando informações após já ter pedido desculpas ao público pelo erro da empresa em identificar e corrigir os problemas com maior antecedência. Ou seja, ela reconhece o erro até porque a GM apanhou muito da mídia e das autoridades, antes que a CEO tomasse para si a condução da crise.
Segundo o articulista do Financial Times, “a Malaysia Airlines foi apanhada em meio a uma vasta investigação envolvendo 26 países, tendo à frente o governo da Malásia, que levou uma semana até declarar publicamente que estava no comando. A história continuou mudando, durante a primeira semana. Um sujeito diz uma coisa e outro sujeito diz outra. “Foi muito difícil", diz um dos consultores de relações públicas que foram chamados para dar consultoria sobre a crise.”
"Eu honestamente não acho que a crítica seja justa", disse Indira Nair a um site internacional (Relatório Holmes). "Considerando a complexidade do que aconteceu, o que poderia a companhia aérea ter feito melhor?"
Indira Nair, que deixou a companhia em 2010 e agora tem sua própria consultoria, observou que a diretoria da Malaysia Airlines foi paralisada pela própria resposta desconfortável da comunicação do governo da Malásia.
"O governo da Malásia não está acostumado a lidar com a mídia internacional, especialmente em situações como esta", disse ela. "A crise não é um ensaio - você deve fazer a sua preparação com antecedência."
Embora John Gapper tenha razão em muitos argumentos, seu artigo não faz toda a justiça à atuação da Malaysia Airlines. Colecionamos e analisamos até agora todos os 30 Comunicados que a empresa divulgou desde a manhã do dia 8 de março, quando foi disparado o alarme do desaparecimento do avião. A empresa foi correta e muito cautelosa em todos os “statement”.
Ela mesma explicou, nos dias que se seguiram à angústia de não se descobrir nada, que não podia especular com boatos ou informes não comprovados. Em certos momentos, poderia parecer fria e insensível. Mas o que poderia fazer, diante da incerteza e especulações sobre o desaparecimento do avião?
Parece muito fácil para quem está fora do cenário da crise e até mesmo numa redação fazer análises descomprometidas e críticas sobre a reação de um CEO, de um Comitê de Crise num momento de comoção, com vítimas. Mas só quem enfrentou crises graves sabe o quanto é difícil se comunicar e tomar decisões nesse momento. Os riscos de erros são enormes. E muito poucas empresas numa crise grave passam ilesas, sem qualquer erro.
Voltemos ao artigo do Financial Times: “Por último, a GM tem uma narrativa. Ela entrou em concordata em 2009 e voltou à vida sob nova administração, que culminou com a nomeação de Mary. O Cobalt foi produto de um momento em que a GM fabricou carros baratos de baixa qualidade nos EUA.
Embora ninguém diga isso publicamente, o fiasco envolvendo o Cobalt é emblemático da velha GM.” Talvez aqui o articulista tente achar algum argumento para minimizar a crise da gigante automobilística. Mas não importa como a crise começou ou se pode ser atribuída a um produto atrasado tecnologicamente. E, nesse caso, nem o número de vítimas, bem menor do que no acidente da Malásia, minimiza a crise. As vítimas das crises querem que as empresas, não importa a natureza da crise, se comportem adequadamente nesse momento, pelo menos para mitigar as perdas, já que as organizações não foram capazes de evitá-la.
Para Gapper, “Mary é veterana na GM, mas não foi vinculada ao problema (se tivesse, isso ameaçaria sua posição). Em vez disso, tinha uma história para contar: o Cobalt mostra por que a GM precisa mudar. Ela capitalizou isso anunciando mais três "recalls" por razões de segurança.”
O articulista conclui dizendo que “o problema de não dispor de uma narrativa redentora ao atravessar uma crise é que uma outra história lhe será imposta.”. Como diz Jack Welch, no livro “Paixão por vencer. Winning – A bíblia do sucesso”, “Não existem crises sem sangue no chão”.
O CEO da Malaysia Airlines certamente não sairá ileso dessa grave crise, ainda que não se possa atribuir diretamente à empresa a culpa pelo acidente. “Ahmad admite que poderá renunciar em consequência do desastre, e sua companhia aérea e país precisam evidentemente de alguém que assuma a culpa. Tanto as famílias enlutadas como a narrativa poderão exigi-lo”, conclui Gapper.
O artigo do Financial Times foi publicado no Brasil no Valor Econômico de 27/03/14, com tradução de Sérgio Blum.
“Statement” enviado por SMS, pela Malaysia Airlines, em 24/03/14
It is with deep sadness that Malaysia Airlines earlier this evening had to confirm to the families of those on board Flight MH370 that it must now be assumed the flight had been lost. As the Prime Minister said, respect for the families is essential at this difficult time. And it is in that spirit that we informed the majority of the families in advance of the Prime Minister’s statement in person and by telephone. SMSs were used only as an additional means of communicating with the families. Those families have been at the heart of every action the company has taken since the flight disappeared on 8th March and they will continue to be so. When Malaysia Airlines receives approval from the investigating authorities, arrangements will be made to bring the families to the recovery area and until that time, we will continue to support the ongoing investigation.
Ilustração: Financial Times
Nota de Condolências no site da Malaysia Airlines
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