Todos sabemos que as obras para a Copa do Mundo estão atrasadas. O governo teria descoberto a fórmula de resolver o impasse, modificando a Lei de Licitações. Medida Provisória, aprovada pela Câmara dos Deputados, sob o argumento de enfrentar o lobby das empreiteiras e outras empresas, participantes das licitações, afronta o princípio da transparência.
O chamado Regime Diferenciado de Contratações (RDC) manteria em sigilo os detalhes das licitações, para evitar combinações de preços entre os participantes.
O tal RDC inclui ainda a possibilidade de se aumentar o valor de um contrato de obras sem limite em uma mesma licitação e a suspensão da garantia de acesso regular às informações dos contratos pelos órgãos de controle. Essa prerrogativa ficaria a critério do governo. Ou seja, um atentado violento ao direito da informação nos negócios públicos.
A reação da sociedade, dos partidos de oposição, do Ministério Público e da mídia foi imediata. No momento em que se cobra mais transparência nos negócios públicos, estaríamos dando um passo atrás na forma de contratar obras públicas, sob o manto sigiloso e protetor do governo. Alguns ministros e porta-vozes oficiais foram aos veículos de comunicação, com ares de monges franciscanos, tentar convencer o contribuinte da justeza do processo e justificar as vantagens do RDC.
Como o ministro do Esporte, um dos mentores da grande novidade. Ele acredita, realmente, que os brasileiros engoliram a justificativa do sigilo, como forma de facilitar e melhorar os preços nas licitações para a Copa e as Olimpíadas? Pode haver procedência em alguns argumentos, mas quando se misturam governo e licitações, não há como esquecer o filme “O passado me condena”.
O ceticismo dos brasileiros quanto à seriedade da proposta tem lá suas razões. Esse é o mesmo ministro que, na euforia da escolha do Brasil como sede da Copa do Mundo e, depois, das Olimpíadas, anunciou que os brasileiros poderiam ficar tranquilos. Haveria uma página na internet, onde qualquer cidadão acompanharia on line todos os dispêndios dos dois eventos.
Algum leitor conhece sequer um site do governo com informações precisas sobre dispêndios da Copa do Mundo? Não fosse a pressão e o esforço da imprensa para arrancar dados sobre o estágio das obras, a maioria atrasadas, nós não saberíamos absolutamente nada quanto a gastos, cronograma e data de conclusão. Por que agora, premidas pelo tempo, as contratações devem se manter em sigilo?
Além disso, há o malfadado exemplo da organização dos jogos Panamericanos, em 2007, sob supervisão do mesmo ministro, que agora quer nos convencer da necessidade do sigilo. Infelizmente, nós brasileiros temos memória curta. Esquecemos logo as promessas. Os gastos públicos previstos para realização do jogos, sob supervisão desse mesmo ministro, eram de R$ 600 milhões.
Várias empresas privadas, sempre prontas para aparecer com suas marcas no lançamento dos megaeventos, na hora de colocar a grana, acabam caindo afora. Aí sobra para a viúva, o erário. Nós os contribuintes, que pagamos impostos. Aquela previsão de R$ 600 milhões para o Panamericano foi completamente furada. Foram gastos cerca de R$ 3 bilhões. Nem o TCU conseguiu apurar direito os valores e penalizar os culpados pelo rombo, porque foram obras feitas às pressas, sob a justificativa de o país não fazer feio. Ou seja, ficou tudo por isso mesmo. Diante do cenário atual, você daria um cheque em branco para esses mesmos ministros?
A possibilidade de que agora, com as obras da Copa e das Olimpíadas, tenhamos uma reprise do que aconteceu no Pan é muito grande. Na realidade, as obras dos estádios, aeroportos e de infraestrutura das cidades-sede estão muito atrasadas. Em alguns locais, nem começou. Em São Paulo, o Corinthians tenta assegurar o aval do governo do estado ou do BNDES para garantir grande parte dos recursos (públicos) para construir um estádio privado. Ou seja, um Engenhão paulista. Como se sabe, o estádio hoje utilizado pelo Botafogo, no Rio, como se dono fosse, foi construído e financiado por verba pública. Fácil ter um estádio assim. O Botafogo deveria, além da manutenção do estádio, pagar uma taxa ao governo para compensar os investimentos. Esse pagamento está sendo feito? O Corinthians também quer o seu Engenhão, no pacote da Copa. Quem não quer? Até o Asa de Arapiraca.
Voltemos à malfadada MP. Diante da reação da imprensa, da oposição e de alguns raros políticos, além do Procurador-Chefe do Ministério Público, que considerou “escandalosamente absurdo” ter despesa pública protegida por sigilo, o governo certamente vai ter que recuar. Já há claros sinais de que a conivência na Câmara com a tese do sigilo não encontrará respaldo no Senado.
Um regime democrático pressupõe a transparência nos negócios públicos. Salvo raras exceções, que implicam a segurança nacional, não cabe mais em pleno século XXI sigilo em matérias que envolvem recursos públicos. Flexibilizar a Lei de Licitações, sob o argumento da urgência e obtenção de melhores preços, para as obras da Copa, não encontra respaldo no bom senso e nem em prerrogativas do Estado de Direito. Se mesmo no regime atual a maioria das obras públicas acaba caindo na triagem dos órgãos fiscalizadores, como TCU, CGU, MPU, por irregularidades, o que esperar de contratos que serão feitos sob supervisão única de um grupo de privilegiados?
Ilustração: maquete do Estádio Mané Garrincha, Brasília, em obras e sujeito a modificações.