Provavelmente a economia global ainda não pôde medir a extensão e as conseqüências desta crise, não quantificou todos os prejuízos e os anos de atraso impostos às economias dos países desenvolvidos e emergentes. Sem falar na estagnação das economias que nunca tiveram capacidade de deslanchar.
Sim, porque apesar de alguns gurus econômicos e até governantes acharem que os efeitos mais graves da crise estariam restritos aos países desenvolvidos, como Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra, a verdade é outra. Independentemente do porte da economia, todos os povos já sofrem ou irão sofrer conseqüências desastrosas.
O segundo semestre será lembrado pelos milhões de empregados que foram dispensados. Pelos milhares de proprietários que perderam suas casas, nos Estados Unidos, por não poder pagar. Pelos imigrantes que, sem serviço, começam a fazer o triste caminho de volta para casa. Por aposentados e pensionistas, investidores pequenos e grandes que viram seus ativos se pulverizarem da noite para o dia. Tenham ou não caído no golpe bilionário do megainvestidor Madoff.
Pior constatar agora, quando todos conheceram seus efeitos, ser uma crise que poderia ter sido prevista como os fatos demonstram. A falta de ações preventivas se constitui, segundo Jonathan Bernstein, consultor de crise, no maior erro na gestão de crise. Foi o que faltou também no colapso atual. Vários economistas previam que a bolha iria estourar. Nouriel Roubini, da New York University, foi um dos que anunciou há anos que o mundo não suportaria a bolha formada em torno de Wall Street. Ninguém quis encarar a realidade. Governantes e gestores financeiros se negavam a admitir, aliás, uma das características das crises.
Crises de valores e de ética
Mas as crises deste ano não se restringem à área econômica. Elas balançaram estruturas, ameaçaram governantes, congressistas, empresários, todos envoltos num emaranhado de problemas que serviram para consagrar realmente 2008 como o ano da crise.
No exterior, governadores nos Estados Unidos foram pivôs de escândalos que variaram dos programas sexuais à venda de vaga de senador. O Diretor Geral do FMI teve que explicar favorecimento a uma namorada. O Presidente Bush tardiamente reconheceu ter errado na avaliação sobre o poderio do Iraque. E olha que não faltaram advertências na época.
Na América Latina, governantes, políticos e empresários não conseguiram explicar as ligações perigosas com as Farc e narcotraficantes ou envolvimento com malas de dinheiro que circulam em épocas de eleições. Na África e na Europa oriental criaram-se guerras e carnificinas internas apenas por caprichos pessoais ou tribais.
No Brasil, a Polícia Federal talvez tenha sido o personagem mais assíduo, quando se analisam as crises de 2008. Em alguns casos ela própria se transforma em pivô principal da crise. Aqui, atribuir a responsabilidade à PF acabou se transformando no álibi do governo para dizer que está apurando alguma denúncia, não interessa a origem.
As operações midiáticas se sucederam em 2008, com prisões a rodo, furo privilegiado para uma emissora de TV, sempre presente na hora das prisões, com cabeças cobertas e algemas. A sensação de justiça e punição a fraudadores, estelionatários, empresários e governantes inescrupulosos não durava mais do que uma semana. A polícia prendia num dia e a justiça libertava no outro. Difícil dizer, neste fim de 2008, quem no Brasil está preso por ter desviado dinheiro público.
Operação Tabajara
O símbolo do ano desse emaranhado policial e jurídico deve ser a famosa Operação Satiagraha, que tentou levar para a cadeia o empresário Daniel Dantas e comparsas, numa investigação longa e complicada. As trapalhadas do delegado da PF, encarregado do inquérito, acabou fazendo esquecer quem são os réus, tantas foram os atropelos e escorregadas na condução do processo. O governo gastou mais tempo explicando os erros da PF e da ABIN do que os crimes dos acusados. Não faltaram tentativas de enquadrar até mesmo a jornalista que deu o furo. O juiz e o delegado do caso quase acabam réus. Os ingredientes dessa operação foram tão controversos que não pouparam nem o Supremo Tribunal Federal em lambanças com grampos, acusações e suspeitas.
No bojo dessas operação, ficou-se sabendo que o Brasil é o paraíso dos grampos. O número variou de 1 milhão a 200 mil grampos autorizados ou não pela justiça. Depois de muita controvérsia, agora aparece um número oficial. Justiça autorizou 224 mil grampos telefônicos em 2008. De causar inveja aos Estados Unidos. É quando a gente descobre que as empresas de varejo também nos vigiam, com monitoramento não apenas por câmeras, mas pelos cartões fidelidade e de crédito. Se vivo fosse, George Orwell estaria morrendo de rir.
Os governos, como sempre, foram os protagonistas principais das crises no Brasil. Isso vale tanto para as autoridades federais, como governadores, prefeitos e seus áulicos. Nem a Justiça escapou. No Espírito Santo, a quadrilha estava dentro do Tribunal de Justiça do Estado.
A retrospectiva do ano muitas vezes esquece crises de costumes. Não se sabe nem como elas acabaram. Apenas para lembrar. 2008 começou com a crise dos cartões corporativos, que derrubou ministros pelas compras no freeshop e embaraçou outros por causa de uma simples tapioca. O ano também foi marcado pela troca de farpas na área do meio ambiente, culminando com a queda da ministra Marina Silva, uma das reservas morais do governo Lula.
Mas uma das crises mais agudas do governo, até agora sem final feliz, foi a versão do vazamento de dossiê com gastos do governo FHC. Diante da pressão para explicar por que o governo se debruçou e começou a vazar informações reservadas do governo anterior, a ministra -chefe da Casa Civil teve que ir a público dar uma entrevista onde mais se atrapalhou do que explicou, não faltando até mesmo uma aula sobre como funciona o excel.
Explicações constrangedoras foi o que mais se viu em 2008 na Casa Civil. Lembram-se da venda da Varig? Pois a ex-diretora da Anac, Denise Abreu, acusou o governo de fazer pressão para o negócio sair. Interferência de governo em negócio privado quase sempre acaba mal. Mais um episódio não explicado do ano que passou. Nem o BNDES escapou de ter sua imagem vinculada a escândalos. Nas denúncias contra o sindicalista Paulinho e sua esposa, aparecem interferências suspeitas no BNDES para empréstimos a empresários. Tudo acabou em pizza com a absolvição de Paulinho pelo Congresso Nacional.
Enquanto isso, na UnB o Reitor, depois de gastos não explicados com o orçamento da Universidade, não saiu na hora certa e foi escurraçado pelos alunos. O mesmo aconteceu na Unifesp. Os alunos também ultrapassaram todas as normas de boa conduta ao invadir a Reitoria sob o beneplácito do governo federal. Apesar da determinação da Justiça, eles só saíram de lá quando quiseram. Mau exemplo para quem exige respeito aos direitos.
Outras duas instituições nacionais também foram protagonistas de crise em 2008. O Exército, uma entidade até então ausente das páginas policiais, protagonizou uma das maiores crises do governo em 2008. Depois de terem detidos três jovens, eles foram entregues por um oficial e soldados a traficantes rivais para darem um “corretivo”. Resultado: a morte violenta dos três e explicações pouco convincentes para a presença do Exército na favela, oferecendo segurança a uma obra de cunho eleitoreiro. Os Correios, protagonista em 2005 de um dos maiores escândalos do atual governo, voltou novamente com denúncias que culminaram na demissão do diretor comercial, envolvido em corrupção.
Outro episódio deprimente de 2008, que mostrou o despreparo do governo para crises foram as mortes causadas pela dengue no Rio de Janeiro, no início do ano. O jogo de empurra dos governos federal, estadual e municipal só serviu ao mosquito. Ele ceifava vidas, enquanto o ministério da Saúde e as secretarias discutiam quem devia fazer o quê. Após 92 mortes, este talvez o maior símbolo da incompetência dos governos para gerenciar crises.
A lista é grande. Aqui também tivemos governadores enredados. No Ceará, o governador deu carona para a sogra numa viagem à Europa paga com dinheiro público. No Rio G. do Sul, a governadora viu-se enredada em acusações e suspeitas pelo próprio vice-governador e na explicação para a aquisição de uma casa. Ela passou mais tempo administrando a crise do que o estado gaúcho.
A mídia também foi protagonista de crises em 2008. Jornais britânicos se retrataram na primeira página com os pais da menina Madeleine, que sumiu num balneário de Portugal, por tê-los acusado de cumplicidade no desaparecimento da menor. A BBC demitiu apresentadores que desrespeitaram um artista famoso em programa de rádio. Na China, apesar das promessas, a censura correu solta durante a Olimpíada. Não bastassem restrições à internet, nem os táxis escaparam de ter conversar de passageiros gravadas inescrupulosamente.
Aqui, a imprensa transformou um crime bárbaro, o assassinato da menina Isabela Nardoni, numa novela com todos os ingredientes de um dramalhão. Faltou respeito e limites à privacidade, sempre com a cumplicidade de peritos, polícia, familiares, promotores, jornalistas, apresentadores de TV e outros aproveitadores. A mídia também exagerou no seqüestro que culminou na morte de uma jovem, pelo namorado, em São Paulo. A transformação do crime em episódio midiático despertou no seqüestrador o desejo de exibição, que certamente contribuiu para a sucessão de erros da polícia e no gesto tresloucado do seqüestrador.
De tudo o que vimos em 2008, fica a lição de que os erros cometidos por governos, polícia e até mesmo pela mídia lamentavelmente não significam um aprendizado para as próximas crises. As lições são bem difíceis de ser assimiladas. Isso não se restringe ao Brasil ou a países com estruturas políticas e policiais frágeis. Acontece também nas sociedades bastante adiantadas e civilizadas. Ou alguém poderia explicar por que países como Estados Unidos e Islândia ainda são surpreendidos por jovens armados nas universidades, que chegam atirando e matando os colegas?
Quando nos debruçamos sobre as crises atuais, talvez devêssemos atentar para o que disse Rabbi Benjamin Blech, professor de filosofia na Yeshiva University, em Nova York, diante da desgraça proporcionada pelo financista Bernard Madoff: Ao elevar para um nível de semiadoração pessoas com grandes fortunas, nós temos destruído os valores de nossa futura geração. Precisamos de um repensar total de quem são os nossos heróis, quem são os modelos, a quem nós devemos honrar.