Repórteres do jornal britânico The Guardian passaram a semana apurando os desdobramentos de uma tragédia ocorrida após um ataque a uma escola, executado por um fanático, que esfaqueou várias crianças. O crime bárbaro ocorreu numa escola de dança, em Southport, pequena cidade do norte da Inglaterra. As consequências chocantes da tragédia, especialmente no interior do país, distante dos grandes centros, foram agravadas pela desinformação.
Na manhã de segunda-feira, 29 de julho, um grupo de crianças participava de um festival de danças, com enredo temático alusivo à Taylor Swift. As crianças aproveitavam as férias de verão. Por volta do meio dia, a escola foi invadida por um fanático, armado com uma faca, que passou a atacar as crianças. No atentado, ele assassinou duas meninas e uma terceira, atingida, morreu no dia seguinte. Várias outras crianças ficaram gravemente feridas, juntamente com dois adultos. Foi o pior ataque a crianças no Reino Unido desde o massacre de Dunblane, Escócia, em 1996. (1) Pode-se até especular por que a segurança na escola - que, no Reino Unido, é considerada modelo para outros países - não funcionou. Ou esse trágico ataque de Southport ocorreu pela presumida segurança de uma cidade do interior?
Segundo artigo publicado no jornal britânico The Guardian, “tem sido difícil entender os acontecimentos na Grã-Bretanha esta semana. A pessoa acusada do ataque com faca é um jovem de 17 anos que, até a intervenção de um juiz na quinta-feira, dia 1º, não podia ser legalmente identificado devido à idade. Foi um ato de violência profundamente perturbador que chocou o país.”
Como acontece nesses momentos, a comunidade realizou uma vigília comovente na terça-feira para lamentar o atentado, mas, segundo o jornal britânico, logo após houve outro acontecimento tão chocante quanto o próprio atentado. “Quase imediatamente após o ataque, grupos de extrema direita começaram a espalhar desinformação, incluindo um nome falso para o suspeito, além de imagens racistas, geradas por Inteligência Artificial (IA), para transformar o evento em arma contra os muçulmanos, bem como contra aqueles que procuram asilo na Grã-Bretanha. A três quilômetros do local da vigília, uma multidão de extrema-direita, muitos dos quais estavam bêbados, reuniu-se em frente a uma mesquita. Eles atacaram o prédio e 53 policiais ficaram feridos.”
Enquanto a mãe de uma das vítimas apelava para um clima de calma, Nigel Farage, um deputado eleito pelo Partido Reformista, e que já tem um passado de radicalismo, foi acusado de ajudar a incitar a violência, ao fazer comentários que sugeriam que a verdade sobre o incidente estava sendo ocultada. Ou seja, ajudou a criar uma teoria conspiratória totalmente falsa, partindo de quem deveria contribuir, pelo mandato que exerce no Parlamento, para reduzir as tensões num momento tão delicado.
Segundo o The Guardian, na quarta-feira, dia 31 de julho, eclodiram distúrbios em outras regiões de Inglaterra, incluindo ataques a alojamentos utilizados por imigrantes, beneficiados pelo direito a asilo.
Repórteres do jornal analisaram como as falsas alegações sobre o ataque conseguiram se espalhar tão rapidamente e como os bots que apareceram no TikTok e a Inteligência Artificial (IA) ajudaram a impulsionar o ressurgimento das teorias terroristas da extrema direita.
Os repórteres do jornal passaram a semana no local do atentado, sendo testemunhas de “um momento desesperador que tem sido para a cidade e como a tragédia foi sequestrada por grupos oportunistas de extrema direita. Se você realmente se preocupa com as vítimas de uma tragédia indescritível, não use o sofrimento delas como desculpa para saquear lojas de esquina”, diz um dos repórteres.
Convém lembrar que em um atentado nos EUA, na escola Sandy Hook Elementary School, de Newtown, pequena cidade no condado de Fairfield, Connecticut, (EUA), em dezembro de 2014, que resultou na morte de 20 alunos e seis professores, criou-se nos EUA, principalmente pelas redes sociais, um movimento de extrema direita para negar as mortes dos inocentes. Os pais dos alunos mortos precisaram entrar na Justiça para esses grupos cessarem os ataques negacionistas, que insinuavam, pela irresponsabilidade e pelo fanatismo político, ser esse atentado forjado pelas famílias, com o respaldo da mídia. Pura paranoia.
Para o jornal britânico, no caso da Inglaterra, “a desinformação na sequência de grandes eventos noticiosos está se tornando endêmica em todo o mundo, com as empresas de redes sociais relutantes ou incapazes de agir. Os acontecimentos em Southport lembraram os tumultos em Dublin (2), Irlanda, no ano passado, após outro caso de crianças pequenas sendo esfaqueadas por um homem que, segundo rumores, era estrangeiro.”
Em Dublin, um homem de 50 anos foi acusado de tentativa de assassinato de três crianças em um ataque com faca do lado de fora de uma escola primária em dezembro de 2023. Quatro pessoas ficaram feridas - três crianças e um funcionário escolar - nesse ataque em Parnell Square East.
Da mesma forma, na sequência do tiroteio no comício de Donald Trump, o atentado em Southport foi aproveitado por aqueles que apostam no quanto pior melhor, e levantam teorias com informações falsas para comprometer minorias, principalmente imigrantes. Nesse caso, há um papel crucial dos meios de comunicação e das próprias redes sociais no combate à espiral instantânea de notícias falsas. Como se constata no que os britânicos testemunharam esta semana, a desinformação online causa danos reais.
Mas é importante que esta agitação não ofusque o que mais importa: três crianças inocentes foram mortas. Outras feridas. E aqueles que não se feriram e presenciaram o atentado, vendo seus coleguinhas serem mortos de forma estúpida?
As especulações sobre a identidade do suspeito de ter cometido esse crime sozinho têm aumentado nas redes sociais. A ministra do Interior da Inglaterra, Yvette Cooper, instou o público a evitar especulações “inúteis” e disse que as empresas de mídia social “precisam assumir alguma responsabilidade” pelo conteúdo relacionado ao ataque. Aqui respondemos a algumas perguntas sobre como as falsas alegações sobre o incidente em Merseyside se espalharam online tão rapidamente.
Como o conteúdo enganoso se espalhou?
Logo após o ataque, diz a reportagem do The Guardian, as contas nas redes sociais começaram a espalhar especulações polêmicas e incendiárias. A plataforma X desempenhou um papel fundamental no desenrolar dos acontecimentos.
Uma conta chamada Europe Invasion, conhecida por publicar conteúdo anti-imigrante e islamofóbico, postou no X às 13h49, logo após o surgimento da notícia do ataque, que o suspeito era “supostamente um imigrante muçulmano” – uma afirmação que era falsa. Desde então, a postagem teve 6,7 milhões de visualizações.
Joe Ondrak, analista sênior da Logically, uma empresa do Reino Unido que monitora a desinformação, disse que a reivindicação dos imigrantes muçulmanos foi amplificada nas redes sociais como resultado. “Essa frase específica circulou por todos os influenciadores e canais de extrema direita”, acrescentou.
Marc Owen Jones, professor associado da universidade Hamad Bin Khalifa, no Catar, relatou que houve pelo menos 27 milhões de curtidas das postagens no X, que afirmavam ou especulavam que o suposto agressor era muçulmano, um migrante, um refugiado ou um estrangeiro. Ele disse em um tópico no X que houve uma tentativa “clara” por parte de “influenciadores e vigaristas de direita” de promover uma agenda anti-imigrante e xenófoba, segundo o The Guardian.
A reportagem alerta que figuras proeminentes da direita desempenharam um papel na divulgação de alegações falsas. Tommy Robinson, um ativista britânico de extrema direita cujo nome verdadeiro é Stephen Yaxley-Lennon, disse em uma postagem no X que os manifestantes em Southport eram “justificados em sua raiva”, enquanto Andrew Tate, um influenciador misógino, alegou que o agressor era um “ilegal”, migrante” e disse às pessoas para “acordarem”
De onde veio um nome falso e como foi divulgado online?
A divulgação de um nome falso para o suspeito tornou-se o catalisador da mais potente desinformação ocorrida naquele país. Não está claro qual foi a primeira fonte do nome fabricado, que parecia ter sido escolhido para refletir tropos islamofóbicos, mas foi amplificado por um site de notícias falso que se autodenomina Channel 3 News Now. Esse site, que não tem nenhum funcionário identificado e apresenta uma mistura de notícias emocionantes e histórias esportivas dos EUA e do Reino Unido, respondeu a um e-mail do Guardian sobre o relatório para dizer: “Lamentamos profundamente qualquer confusão ou inconveniente que isso possa ter causado.”
A publicação no X e a subsequente “cobertura” pareciam ter amplificado a desinformação original, antes de ser amplamente partilhada durante 48 horas por ativistas de extrema direita, teóricos da conspiração e autodenominados “influenciadores” em plataformas como o TikTok. As pesquisas pelo nome falso, que aumentaram enormemente na segunda-feira, agora desapareceram.
Esse é um típico caso de crise grave que aconteceu com uma escola, mas agravado pelos desdobramentos num ambiente e num mundo ainda frouxo na lei, ou até pelo despreparo dos empregados e terceirizados para conduzir o treinamento segundo os protocolos de gestão de crise. A divulgação de fatos extremamente doloridos, no caso o assassinato de crianças na frente dos colegas, pode deixar sequelas psíquicas e sentimentais nas crianças presentes à aula naquele dia, com lembranças que elas terão muita dificuldade de entender e aceitar.
(1) Massacre na escola de Dunblane, equivalente a um Jardim de Infância, em 13 de março de 1996, no qual um homem armado invadiu uma escola primária na pequena cidade escocesa e matou a tiros 16 crianças e seu professor, antes de apontar uma arma para si mesmo. Cerca de 15 pessoas, maioria crianças, ficaram feridas num dos maiores atentados contra escolas ocorridos no Reino Unido.
(2) Em Dublin, um homem de 50 anos foi acusado de tentativa de assassinato de três crianças em um ataque com faca do lado de fora de uma escola primária em dezembro de 2023. Quatro pessoas ficaram feridas - três crianças e um funcionário escolar - nesse ataque em Parnell Square East.
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