Gremio rebaixamento dois

As crises fazem parte da natureza das organizações. A rigor, existem dois tipos de empresas: as que tiveram crise. E as que vão ter. São ameaças ou erros de gestão que custam muito caro, quando mal administrados. O Campeonato Brasileiro de Futebol expôs com toda a crueza essa realidade. Com os clubes de futebol (empresas) não é muito diferente. É só observar o que aconteceu nos últimos dois ou três anos com equipes tradicionais do futebol brasileiro, como Cruzeiro,  Botafogo, Vasco, apenas para citar três grandes clubes do Brasil, que já venceram campeonatos nacionais e internacionais.  Onde está a tradicional Portuguesa, que já foi finalista do Campeonato Brasileiro? Um clube de futebol nos tempos atuais é uma empresa, sujeita à ameaças, mas também oportunidades que o mercado da bola oferece.

Uma saga tricolor. 

Assistimos, com muita surpresa, no Campeonato Brasileiro, este ano, a derrocada de um dos times mais vencedores dos últimos anos no Brasil. Trata-se do Grêmio Foot-Ball Porto-Alegrense, com uma tradição de 118 anos e vários títulos internacionais e nacionais. O que aconteceu com o Grêmio, em tão pouco tempo, para chegar ao fim do campeonato contando ponto a ponto para não cair? Sem capacidade de reação. Ou perdendo jogos fáceis para equipes menos qualificadas? 

Para uma análise mais equilibrada, fomos ouvir torcedores que acompanham fielmente o “imortal”, entendem de futebol e, ao mesmo tempo, cotejar essas opiniões com as dos comentaristas esportivos. Os próprios jornalistas se perguntam: o que aconteceu com o Grêmio, em tão pouco tempo? Como um Clube em boa situação financeira, vindo de temporadas de vitórias, com um elenco qualificado, entra numa descendente de maus resultados e queda de qualidade, que culmina no rebaixamento? Quais as lições que outros clubes podem tirar dessa crise?

Uma crise anunciada 

Gremio campeaoA crise grave do Grêmio não começou em 2021. Este ano foi apenas o ápice de uma gestão confusa e errática do departamento de futebol e de uma política de contratações equivocada, onerosa e pouco produtiva.  Para Vilmar Fogaça,  ex-Cônsul do Grêmio em Brasília, a crise gremista é o resultado de decisões e conceitos equivocados que, na maioria das vezes, foram embaladas pela soberba e arrogância. Comportamento que começou a se agravar logo após as conquistas de 2016 e 2017. Poderíamos dizer que o “gatilho” dessa crise remonta a 2018, quando, no campo, o desempenho gremista começou a dar sinais de ‘fadiga do material’, e não se viam atitudes para revertê-la.  

Basta recordar um jogo marcante e de triste memória: Grêmio x River, pela semifinal da Libertadores, em 30 de outubro de 2018. O Grêmio havia vencido (1x0) em Buenos Aires. Na Arena, em Porto Alegre, fez um gol que, no agregado, lhe dava um placar tranquilo de 2x0. Até os 36 minutos do 2º tempo. Quando o treinador do Grêmio mexe na zaga e coloca um jogador, que vinha de erros e de atuações bastante controversas nos últimos jogos. Ora, no calor daquele jogo, com o River indo para cima do Grêmio, faltando pouco mais de 10 minutos para a partida terminar, foi extremamente temerário, para dizer o mínimo, colocar na zaga, acossada pelos argentinos, um jogador limitado, inseguro e frio. O resultado todos sabem: dois gols em menos de cinco minutos. Em cima de Bressan. E o River despachou o Grêmio. Ali poderíamos dizer, foi o marco da derrocada da equipe vencedora do Grêmio, por um erro tático do treinador. Até porque, a partir dali, o tricolor gaúcho não mais venceu qualquer decisão de relevância, a não ser o campeonato gaúcho.

O ex-cônsul do Grêmio assegura que “depois de duas temporadas memoráveis, passamos a viver somente dos títulos do Gauchão e de vitórias em Grenal, iludidos com a falácia de que ainda jogávamos o melhor futebol e tínhamos o melhor time do Brasil, mesmo tendo causado fiascos seguidos na Libertadores e na Copa do Brasil. Era o cenário imaginário preconizado da Ilha da Fantasia, enquanto, na realidade, eram tomadas decisões diametralmente opostas ao “status quo” apregoado.”

Para o professor e escritor Jorge Duarte, “o principal erro foi a direção, técnicos e torcedores não terem notado que a equipe foi se desmanchando nos últimos anos. Ela começou a ser construída com o Roger; com Renato evoluiu e se consolidou. Ganhou títulos e logo em seguida, sem que ficasse muito claro, passou a viver do passado glorioso. Os resultados foram fracos já em 2019, pioraram em 2020, sempre com a expectativa de que o problema seria resolvido. E não foi. O time trocou a garra pelo jogo refinado. Quando perdeu o jogo refinado, não tinha a garra.” 

“Os jogadores jovens foram muito incensados. Todos pareciam craques. Só que a grande maioria não demonstrou isso nos momentos decisivos nem a longo prazo. Jogadores que estão há mais tempo no clube perderam o fôlego e aqueles contratados com fama não deram resultado. Perdemos de todos os lados: jovens promessas, jogadores que fizeram história recente no clube e os contratados a peso de ouro não entregaram o mínimo necessário”, diz o jornalista. Salvo raras exceções, não se via a raça tricolor em campo.

O jornalista Rodrigo Matos, do Portal Uol, vai direto no ponto: não adianta uma gestão financeira, sem boa gestão do futebol. “Os gastos estavam sempre condizentes com as receitas, as rendas foram maximizadas com boas vendas de atletas, a base é bem produtiva, os contratos eram negociados para beneficiarem o clube. Não por acaso o Grêmio vinha apenas um degrau abaixo de Palmeiras e Flamengo em termos financeiros."

 E por que deu tudo errado?. “Bem, aí é preciso entender a diferença entre a gestão financeira e a do futebol. Ambas são complexas e difíceis de acertar. Ao contrário da gestão financeira de uma empresa, não existe fórmula a ser importada de outra área”, diz o jornalista.

Gremio queda dois“O Grêmio optou por entregar o seu departamento de futebol ao grande ídolo do clube e técnico, Renato Gaúcho. Ele enfrentou disputas dentro do clube por querer gastar além do que poderia. Só que as contratações, formação de elenco, estavam todos na conta do ex-treinador”, que optou por “cascudos” que, em grande parte, decepcionaram.  

 

Para Omar Daniel, administrador e mestre em aviação, que acompanha todos os jogos do tricolor, vários fatores contribuíram para o ‘apagão’ do Grêmio. A “dispensa, ano passado, do preparador físico que deixava o time voando e era respeitado e querido por todos os jogadores. Todos ficaram contrariados. Inclusive, Kanemann deu uma declaração muito forte a respeito. Trouxeram um substituto que estava trabalhando na Coreia. Segundo a imprensa, absolutamente desatualizado. Também foi no pacote o preparador de goleiros, que hoje está no Palmeiras, com um dos melhores goleiros do País. Dar poder demais ao Renato. Não havia diretor de futebol ou gerente que se impusesse a ele nas decisões. "Despachava" direto com o Presidente, e fazia as escolhas de contratação de forma isolada. Ele ligava para o jogador, para ver se queria vir, atropelando até o adversário."

Para Daniel, a diretoria demorava em notar que o time estava se desgastando e em lançar meninos da base, com uma incompreensível preferência por jogadores “cascudos”, do grupo de Renato. Basta recordar a insistente preferência por André Balada, Tiago Neves e Everton, por exemplo, quando os jogadores não mostravam em campo desempenho para justificar a escalação. Até as vitórias nos Grenais ajudaram a mascarar um desempenho pífio nas competições nacionais e internacionais.

Ele ressalta também a “falta de gestão de pessoal. Exemplo: a comemoração excessiva do Campeonato Gaúcho de 2021, quando nove jogadores, e o técnico, contraíram Covid, iniciando o Brasileirão com muitos desfalques e com o time pensando que era muito bom por ter vencido o Gauchão.”

Desmonte e asilo de ex-jogadores

Gremio queda 4Para o ex-Cônsul do Grêmio, dentre tantos fatos ou “incidentes” que alimentaram o processo da queda, iniciado em 2018, vale salientar, como também observou Omar Daniel, “o desmonte do Departamento de Futebol, pela demissão de vários especialistas do Departamento Médico e da Comissão de Preparação Física. Como consequência, a entronização de fato, com aval da Presidência, de Renato também como “manager” do futebol.“ O que foi um erro grave.

- A saída de peças-chave que faziam o time jogar e davam estabilidade à equipe como Marcelo Grohe, Wallace, Artur, Edilson, Luan, Douglas e Ramiro, entre outros. Para piorar, as respostas foram com qualidade técnica bem inferiores. Acrescente-se “a contratação, bem como a renovação de contratos, de jogadores que haviam perdido a condição física pela idade ou por lesões como Cortez, Maicon, Diego Souza, Paulo Miranda, David Braz, Vitor Ferraz, Vanderlei, entre tantos outros.”

- Contratações fadadas ao insucesso, baseadas na crença da mística de que Renato recuperava ex-jogadores, e nesta ilusão amontoaram o plantel com atletas em fim de carreira, como Robinho e Everton, todos contratados a peso de ouro. A maioria não deu a resposta esperada.

- Mais recentemente, após o Grêmio entrar num processo de decadência, a repetição da contumaz troca de treinador como “solução” dos problemas, quando a história é pródiga em mostrar que o problema está no plantel e não especificamente nos treinadores. Este, no entendimento de Vilmar, foi o golpe fatal.  Com o que concorda Omar Daniel, que atribui também “a crise à perda do timing de dispensar Renato e escolhas erradas do substituto. “Quando Cuca saiu do Santos, era o momento de buscá-lo. Mas insistiram um pouco mais com o Renato e o Atlético foi rápido em contratá-lo. Ele tinha levado o Santos, com um time pouco brilhante, para a final da Libertadores, tendo tirado o Grêmio com goleada. Sem contar os erros em contratações, como perder Pedro, Rafael Veiga e outros. Até o Marinho, que veio a ser goleador e craque no Santos, se arrastava no Grêmio, porque Renato não soube aproveitá-lo”, diz. 

O cenário ainda pode ser pior: segundo especulações da imprensa, o Grêmio tem uma folha de pagamentos paralela, que representaria uma despesa extra por jogadores ou técnicos contratados e dispensados, que continuariam recebendo salários, mesmo fora do Clube. Se isso é verdade, a queda para a Série B pode ter outra ameaça: comprometer as finanças, equilibradas do Grêmio, até agora. Calcula-se a redução do faturamento na Série B entre R$ 70 a 100 milhões (cotas de TV, patrocínios e premiações da CBF). Como disse o cronista esportivo do SportTV, Paulo Vinicius Coelho, o Grêmio é a primeira equipe de futebol a cair para a série B com finanças em dia. E, provavelmente, com a maior folha de pagamento da história, nessa série.

 Uma crise anunciada

Gremio queda 5Jorge Duarte ressalta que o início de 2021 já indicava que aquele Grêmio copeiro, que jogava com raça, difícil de ser batido em casa, havia acabado. O time ganhou o Gauchão, torneio fácil, assim como na sequência ganhou vários jogos pela Sul-Americana, passando a enganosa impressão de que todos eram craques. Isso certamente escondeu ainda mais as deficiências.”

Ninguém admitia que o grande time de 2016 e 2017 tinha acabado, como mostraram dois jogos vergonhosos contra o Flamengo, pela Libertadores, em casa, e no Rio, onde levou 5x0, em 23/10/2019. Ali, a diretoria deveria ter tomado uma atitude. Sempre havia esperança de recuperação. Mas não é assim que uma empresa trabalha, quando a crise chega. Nas crises, a pressa “não” é inimiga da perfeição. Quando o Brasileirão começou, todos acreditavam que era uma fase ruim que passaria em poucos jogos. Ninguém notou que o time não era mais o mesmo. E faltou garra, faltou orientação, junto com o futebol. Trocaram os técnicos, mas não havia equipe nem vontade. Aquela jogada tique-taque, que volta a bola para trás, herdada de Renato, continuou. E o Grêmio acabou o Brasileirão com um dos piores ataques e defesas. À exceção de Renato, que falava demais, insistindo que o Grêmio tinha o melhor futebol do Brasil, os técnicos que vieram são os menos culpados, porque pegaram “um carro queimando óleo e com motor quase fundido”.

Para Jorge Duarte, o que acontece hoje é o resultado dos erros anteriores: “Ficou claro ao longo do campeonato que havia muito jogador famoso, com trajetória; muitos aspirantes a craque, mas não havia time. Nunca houve uma equipe nos últimos meses. Nos melhores momentos era um bando de esforçados com algum futebol. Nos piores, um amontoado de jogadores sem saber o que fazer com a bola.”

O comentarista Leonardo Oliveira, de O Globo, compara o Grêmio ao novo rico, que é financeiramente pujante, mas não faz as melhores escolhas de compra. "Depois de vender muitos jogadores este ano, como Pepê (a terceira maior da história do clube), Léo Chú, Matheus Henrique e Ruan, o clube saiu apressado para comprar. As reposições não foram à altura."

"O Renato não era só o técnico, ele gerenciava o futebol do Grêmio. Não tinha um vice de futebol ativo, nem diretor de futebol no clube. Tudo passava por ele. Quando ele saiu, houve uma reestruturação do futebol, com novos cargos. O time não é ruim, mas precisa de tempo para colocar tudo em ordem com o campeonato em andamento, dizia o jornalista no início de novembro.

Falta de reação e garra

“Faltou visão para a diretoria - e ela está lá para assumir essa responsabilidade", diz Jorge Duarte. "O time do Renato foi naufragando e quando saiu parte da direção, os indicados não sabiam mais como administrar o futebol. Renato tomava conta de tudo e a diretoria ficou o ano inteiro sem saber o que fazer. E sempre achando que clube grande como o Grêmio não cairia. E os jogadores sem saber o que fazer com a bola. E os técnicos sem saber o que fazer com os jogadores. E a torcida sem acreditar que o pior poderia chegar. A invasão a campo foi o grande sinal. Ali estava um comportamento de segunda divisão. Mas todos acreditando que não podia, não devia, não iria acontecer. E que nos próximos jogos não tinha como não ganhar, até porque iria enfrentar equipes pouco qualificadas.” 

Preço de craque, futebol de pelada

Duarte também aponta a insistência em alguns jogadores como causa da derrocada do Grêmio. “O maior exemplo, é o Bruno Cortês. Ele não se destacava nem comprometida quando havia ótimos jogadores no time. Esse time foi se desmanchando e ele parou de contribuir. O jornalista também aponta outro exemplo: os goleiros. “Havia fé que eram craques. Seleção, defesas brilhantes na Sul-Americana. Quando jogos difíceis chegaram, não fizeram a diferença. No início, sem grandes defesas, depois, afundaram como todo o resto. Após a saída de Marcelo Grohe, o Grêmio nunca teve um bom goleiro. Paulo Vítor e Vanderlei eram apenas esforçados. E até o último goleiro, Gabriel, que perdeu o Chapecó, e agora é Grando, desconhece como é pegar chutes de longe. Nos últimos jogos, Mancini inexplicavelmente tirou o Breno, melhor que Gabriel Chapecó, e este, que já vinha errando, entregou dois gols no jogo decisivo contra o Bahia.

Outro problema foi o meio-campo. Simplesmente não existiu nos últimos dois anos. Não havia quem articulasse. Maicon foi o último remanescente do bom time. Ele abandonou o futebol de um jeito constrangedor, tentando jogar e não conseguindo. Mesmo com as limitações evidentes do físico, foi o único ao longo do ano que conseguiu mostrar algo.”

 O Grêmio na segundona

Gremio queda 7A segunda divisão não é o fim, entretanto. É um atoleiro. Mas pode ser um pântano difícil de atravessar. O Grêmio vai reviver 2005, jogando em estádios pequenos, desconfortáveis, enfrentando provocações e agressões, como aconteceu no estádio dos Aflitos, contra o Náutico, em 2005. Apenas como exemplo, uma das equipes da série B é o Tombense, da cidade de Tombos-MG. A cidade tem 9.542 habitantes e o estádio pequeno tem capacidade para 3 mil torcedores. Muitos jogadores, que nunca ouvimos falar, revelações, clubes que nem lembrávamos que existia. Será um ano emocionante, diz Jorge Duarte. Mas tem um porém, de que são exemplos o Vasco e o Cruzeiro.

A Série B cresceu muito em qualidade. Não esquecer que Cuiabá, América e Juventude foram times que vieram da série B, em 2021. E não decepcionaram ao disputar a Série A. Isso dá uma ideia de que o desafio do Grêmio para subir novamente será imenso. No nível de uma “batalha dos aflitos”, como ficou consagrada a partida em que o Grêmio ganhou o jogo e o título da série B, em 26 de novembro de 2005, jogando com o Náutico, em Recife, mesmo tendo quatro jogadores expulsos. Isso foi épico. Talvez o futebol nunca tenha assistido algo parecido. Se o Grêmio foi capaz de construir essa página histórica e inédita, certamente vai ter que lutar para voltar em 2022 com a mesma fibra, coragem, ousadia, raça. Tudo que faltou nos últimos três anos.

Fotos:  Pablo Nunes/Agência O Dia/Estadão

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