O incêndio no Hospital federal de Bonsucesso, nesta terça-feira, no Rio de Janeiro, é simplesmente a reprise piorada do filme a que assistimos, em setembro de 2019, quando o Hospital Badim também pegou fogo, na mesma cidade.
Lá, naquele caso, o fogo teria iniciado num gerador no subsolo, o que provocou intensa fumaça tóxica e obrigou o hospital a retirar os idosos que estavam na UTI, bem como outros pacientes de risco. O problema maior no Hospital Badim foi não ter qualquer tipo de alternativa ou treinamento para enfrentar um incidente no subsolo, o que teria amenizado as consequências da fumaça do incêndio que invadiu o prédio.
Na correria para socorro e retirada dos doentes idosos do hospital, 11 pacientes morreram em 24 horas. Difícil esquecer a cena do Hospital Badim, colocando doentes, maioria idosos, em macas improvisadas, na calçada, na frente do hospital, pela falta de um plano de gestão de crise, durante o desastre. Ao longo dos dias, mais mortes ocorreram, no total de 23 pessoas. Seria natural um hospital considerar a hipótese de um incêndio, até porque é o tipo de acidente que está entre os eventos bastante prováveis nessas unidades. Em função disso, o hospital deveria ter um plano emergencial, onde fosse incluída a possível remoção ou realocação dos pacientes. Deu no que deu.
Todos sabiam
No caso do hospital federal de Bonsucesso o fato é até mais grave, porque a direção estava alertada por autoridades e pelo Corpo de Bombeiros sobre a precariedade das instalações e pelo risco de incêndio. Nem a direção do hospital, nem o ministério da Saúde, ao qual compete administrar e fiscalizar a unidade, tomaram qualquer medida para evitar essa tragédia, que até o momento deixou quatro mortos. 192 pacientes precisaram ser transferidos para outros hospitais, inclusive fora do Rio de Janeiro.
A direção do Hospital Federal de Bonsucesso informou que o fogo começou no subsolo do Prédio 1, por volta das 9h45. No local, segundo o comunicado, ficava o almoxarifado da unidade de saúde, com mais de 30 mil fraldas descartáveis. O que teria contribuído para alimentar as chamas. Essa seria uma explicação para a dificuldade dos bombeiros em controlar o fogo, pela quantidade de fumaça.
À tarde, o comandante-geral do Corpo de Bombeiros, que foi acompanhar o trabalho dos militares, disse que o hospital “não estava adequado” e tinha duas notificações, além de dois autos de infração emitidos pela corporação. A informação do Corpo de Bombeiros converge para duas falhas: a primeira, da direção do hospital. Sabendo dos riscos e dos alertas dos bombeiros, não fez nada para evitar a tragédia. A segunda, do próprio Corpo de Bombeiros e dos administradores do hospital, no caso o Ministério da Saúde: por que não criaram um fato, ou qualquer atitude judicial para impedir que o hospital funcionasse sem os alvarás e mecanismos de prevenção necessários? De certa forma, ao se omitir por não cobrar, Corpo de Bombeiros e governo federal são cúmplices dessa tragédia.
O Comandante dos Bombeiros informa que “ já tinha conversado com o diretor do hospital. O hospital foi alvo de duas notificações e dois autos de infração pela corporação. É muito difícil, quase impossível, interditarmos um hospital com aproximadamente 600 leitos", contemporizou Monteiro. Então, a alternativa seria a tragédia acontecer?
Não faltaram alertas para evitar ou amenizar o desastre. Um alarme para um possível incêndio no Hospital de Bonsucesso já havia sido emitido pela Defensoria Pública da União (DPU) em ofício enviado à direção da unidade em meados de outubro, segundo informações do site de notícias G1.
No documento, a Defensoria pediu que os gestores dessem explicações sobre a estrutura de combate a incêndios da unidade. Um relatório de abril deste ano indicava que o prédio tinha diversos problemas que poderiam se transformar em um grande incêndio. Em outro ofício, a DPU solicitou ao Corpo de Bombeiros que apurasse as condições de funcionamento do hospital, e checasse principalmente se havia planos de gerenciamento de riscos e combate a incêndios e situações de pânico. Nesse emaranhado burocrático, a repartição pública entra no modo “acomodaçãoo”. Como ninguém cobra, nada se faz.
Tudo isso para dizer que esse incêndio, como o do Hospital Badim, o do Ninho do Urubu, do CT do Flamengo; o do Museu Nacional, bem como outros museus, em São Paulo, todos foram eventos onde havia falha grave de gestão de riscos. As autoridades e órgãos fiscalizadores sabiam e nada foi feito. Como podem existir vários prédios públicos no Rio, com o mesmo tipo de laudo, sem que os infratores tomem qualquer providência.
O que precisava ser feito
As falhas gritantes de gestão de Crises em hospitais são uma constante, como se comprova quando uma auditoria rigorosa é feita. Infelizmente, nós no Brasil não temos a cultura da gestão de risco, a fiscalização é falha, leniente, mesmo que constate irregularidades, elas não são sanadas e nada acontece. Como demonstra, por exemplo, a tragédia do CT do Flamengo, que já tinha recebido várias notificações da Prefeitura, não poderia estar funcionando e, mesmo assim, continuou como se nada tivesse acontecido. Deu no que deu: 10 adolescentes mortos, instalados numa verdadeira arapuca.
No caso dos hospitais, pesquisas realizadas pelo CRM e pela Fiocruz constataram que em média 70% dos erros hospitalares de qualquer natureza são evitáveis. Ou seja, dois terços dos erros, muitos deles causadores de mortes ou sequelas graves em pacientes, poderiam não ter acontecido. Aqui não se consideram apenas erros médicos, no atendimento, o que incluiria os demais profissionais de saúde. Mas qualquer tipo de erro. Até mesmo falha de segurança, por exemplo.
No hospital federal de Bonsucesso, as falhas parecem endêmicas. Esse hospital foi cogitado para ser referencia no combate à Covid-19, mas foi descartado pelo ministério da Saúde, pela falta de condições. Todos sabiam dos problemas, desde autoridades, até médicos e demais empregados. Lamentavelmente, no Brasil se espera primeiro a tragédia chegar para se tomar alguma providência. Mesmo assim com uma lentidão desalentadora. E quem paga sempre pela má gestão são os pacientes mais pobres e que dependem do SUS para serem atendidos. Como no caso dos três pacientes em estado grave que não resistiram à transferência, durante o incêndio. No caso do hospital Bonsucesso, como também no Badim, uma crise anunciada, que todos sabiam que um dia iria acontecer.
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