Se no exterior, tivemos o ano dos atentados e dos desastres naturais, como marca das crises, no Brasil continuamos com três grandes crises que desde 2015 marcam o País: política, econômica e ética. Esta, representada pelos políticos, lobistas e executivos que, apesar da Lava Jato, continuaram saqueando o Brasil e as empresas do governo. É como uma praga, não há inseticida que extermine essa peste que impregna todos os escalões da política e da gestão do País.
A crise da insegurança
Foram 61,6 mil assassinatos em 2016, recorde histórico do País. O ano que passou não deve ter ficado atrás, porque não se notou nenhuma redução na violência urbana e rural. No 1º semestre contabilizava-se 28,5 mil assassinatos. Ou seja, uma média de 155 pessoas mortas por dia, o que corresponde à queda de um Boeing lotado todo o dia. Sob qualquer aspecto que analisemos, uma anomalia, só comparável a zonas de guerra ou de extrema violência, como acontece em alguns países da Ásia e da África.
No Rio de Janeiro, foram assassinados 134 policiais em 2017, um recorde. Se nem a polícia está segura, imaginem a população. A difícil situação financeira do Rio ajudou a piorar um quadro que já era ruim. O projeto megalômano de Sérgio Cabral, das UPPs, vendido pela mídia como a grande solução para a histórica violência do Rio, foi minguando na mesma velocidade da reputação do ex-governador; e hoje é apenas um arremedo. Algumas UPPs estão abandonadas ou se transformaram em alvo dos bandidos, com policiais acuados, porque muitas favelas que tinham sido “pacificadas”, foram retomadas pelos traficantes.
Mas a crise de segurança do país começa nos presídios - com traficantes dando ordem para assaltos, assassinatos (eles julgam e condenam desafetos), incêndio a ônibus e invasões, e desemboca nas ruas das grandes cidades, onde a população sente-se acuada pelo poder de fogo dos bandidos. 2017 começou com assassinatos em massa nos presídios de Manaus, Natal e Boa Vista. Vários detentos foram decapitados, em brigas de facções, que lutam por controle de áreas do tráfico ou pelo domínio nos presídios. Mais de 100 presos foram executados dentro das prisões brasileiras em 2017, por ordem de quadrilhas rivais ou brigas internas. E não há qualquer informação se as secretarias de segurança sabem quem matou quem. Porque as mortes eventuais continuaram.
A crise da insegurança chegou a níveis tão graves, que a própria polícia tem contribuído para o agravamento. Nos estados do Espírito Santo e Rio Grande do Norte (este no fim do ano), a polícia militar e civil liderou movimentos paredistas, embora em nenhum dos dois estados os policiais os caracterizassem como "greve". No ES, as mulheres fechavam a saída dos quartéis para fingir que impediam a saída da polícia. E no RN, eles alegavam falta de condições para trabalhar. Apesar da Justiça decretar a ilegalidade do movimento, a polícia se negou a voltar ao trabalho e os dois estados assistiram a uma onda de violência sem precedentes. Difícil dizer quem é o principal culpado dessa crise, mas o Estado falhou em não prever e não evitar.
De certo modo, os governos estaduais ficaram reféns dos militares e da polícia civil. O mais grave é que, apesar da flagrante ilegalidade do movimento, ninguém foi punido. Passou a ser recorrente no País classes trabalhadoras afrontarem a Lei, prejudicarem o contribuinte, e nas negociações exigirem não serem punidos e, quase sempre, que os dias parados não sejam descontados. Ou seja, o império do caos. No Espírito Santo, foram 144 mortes em nove dias. No Rio Grande do Norte, onde também os bombeiros aderiram ao movimento, houve mais de 100 mortes em 15 dias, um crescimento de 40% nas ocorrências policiais, em comparação ao ano anterior.
A natureza seca
No âmbito dos desastres naturais, embora o Brasil seja até certo ponto abençoado, não há como ignorar que temos uma crise hídrica em vários estados. Se no Sul, sobrou chuva, no Sudeste, Nordeste e Centro Oeste o país está enfrentando uma das piores secas da história. Rios, como o São Francisco, e barragens que há anos abasteciam cidades do Nordeste, secaram. E não há previsão de chuvas a curto prazo. No Ceará, há seis anos o estado enfrenta estiagem. Até no Distrito Federal, foi preciso um programa de racionamento para que os reservatórios não secassem, dada a escassez de chuva no período chamado “chuvoso”.
No 7º ano de seca, metade dos reservatórios do semiárido estão secos ou com nível abaixo dos 10%. Com a seca mais grave do Nordeste dos últimos 100 anos, parte dos municípios da região está sem água na torneira há um ano. Em Pedra Branca, no sertão cearense, o açude que abastece a cidade está sem água desde 2016, e os moradores dependem da distribuição em carro-pipa.
Em decorrência da longa estiagem, o país sofreu com queimadas, principalmente nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. Algumas parques nacionais, como o da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, tiveram incêndios que destruíram cerca de 26% da área total; ou 65 mil hectares, segundo informações. No outro lado, alguns estados como Rio G. Do Sul, Alagoas e Minas Gerais também enfrentaram enchentes.
Crise política
A Operação Lava Jato continuou com o trabalho de tentar identificar e processar políticos e assessores, bem como lobistas e empresários envolvidos com a corrupção. O fato mais marcante do ano foi o envolvimento dos proprietários do grupo JBS que fizeram delação e envolveram o presidente da República. O presidente foi gravado no Palácio Jaburu, sua residência, pelo empresário Joesley Batista, diretor-presidente do grupo. A economia do país ficou meio que refém dessa delação. De maio a setembro, o Brasil viu o presidente ser denunciado duas vezes pela PGR. Temer alegou inocência e o Congresso Nacional recusou a abertura de processo, nos dois casos. Por trás da denúncia, e de delações que continuaram sendo feitas na Operação Lava Jato, uma relação promíscua entre políticos e empresários de grosso calibre.
O Grupo JBS cresceu à sombra dos governos Lula e Dilma, com farta abertura dos cofres do BNDES e outros bancos e tornou-se o maior exportador de carnes do mundo. A delação de Joesley Batista chegou como uma bomba, mas por falta de clareza e de credibilidade acabou, ao contrário do que o empresário planejou, levando-o pra cadeia, sem comprovar de fato – como ele queria - o envolvimento do presidente Temer. Nesse enredo, que envolveu empresários e procuradores da PGR, além de gravação feita pela PF, ninguém saiu ileso. Para o grande público, continua sendo um assunto grave, mas que não foi até agora bem explicado.
A lista de beneficiados pela Construtora Odebrecht, revelada após a delação do diretor-presidente Marcelo Odebrecht e de outros 50 executivos, não poupou ninguém. Se o PT alegava perseguição, a delação de Marcelo provou que poucos políticos de renome saíram ilesos do departamento de propinas da construtora. Mais de 3 bilhões de dólares saíram dali para os bolsos dos políticos. Um escândalo que transforma o chamado Mensalão num pequeno desvio de conduta. De ministros a ex-ministros, passando por toda a cúpula do governo, hoje no Palácio do Planalto, além de estrelas do PT, a impressão é que ninguém escapou dos mimos financeiros da Odebrecht. 170 políticos envolvidos em contribuições ilegais.
Entre tantos depoimentos, que juntos poderiam dar munição para várias novelas ou romances, alguns se destacaram. O ex-diretor da Petrobras, Renato Duque, confirmou em depoimento que o ex-presidente Lula “e todos eles” (tesoureiro, secretário, membros do PT) sabiam dos desvios do chamado Petrolão. Marcelo Odebrecht também garantiu que Lula e Dilma sabiam do esquema de propinas, fato também confirmado em delação pelos marqueteiros João Santana e Monica Moura. Apesar de Lula negar tudo, esses delatores eram pessoas próximas ao ex-presidente. Por que eles estariam como que fazendo parte de um Tribunal de acusação, dizendo que Lula sabia de tudo, e ninguém contestou?
As investigações da Lava Jato se aproximam de Lula, que fez dois depoimentos durante o ano e foi condenado a 9 anos e meio de prisão pelo juiz Sérgio Moro. Essa sentença será julgada agora pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 4a região, no próximo dia 24 de janeiro. Se confirmada a condenação, Lula fica inelegível. O que pode desencadear outra crise.
Mas 2017 ainda teria muitas surpresas. A PF achou R$ 56 milhões em dinheiro vivo, num apartamento do ex-ministro Geddel Vieira, após denúncia anônima. Ele está preso e até agora não apareceu o dono dessa fortuna. Foi comprovado, por sinais de identificação das digitais, que Geddel e outras pessoas próximas manusearam aquele bolo de dinheiro. Falta também saber de onde ele veio.
Economia dá sinais
Se desde 2015 o Brasil entrou no rol dos países que pararam de crescer, entrando numa recessão que durou pelo menos quatro semestres, em 2017 tivemos o primeiro índice positivo no PIB. Mesmo assim, o país ainda tem 12,5 milhões de desempregados, menos do que em 2016, mas um número gigantesco e que deixa pelo menos 30 a 40 milhões de pessoas, se considerarmos as famílias, num futuro incerto e em crise. Essa a pior marca da economia brasileira em 2017.
De outro lado, o Brasil conseguiu índices de inflação de países desenvolvidos. Cerca de 2%. E a taxa de juros caiu a níveis digamos mais palatáveis: 7% ao ano, o menor nível já registrado pelo Banco Central, desde que começou a série histórica, em 1986. Em julho de 2015, a taxa era 14,25%. Os dados que já foram publicados do desempenho da indústria, em 2017, apontam para uma recuperação até certo ponto consistente, o que poderá pelo menos amenizar uma das crises mais graves do país.
O legado que não ficou
Chamou atenção em 2017 a quantidade de processos envolvendo o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral. De certo modo, a vida pregressa de Cabral explica em parte o descalabro financeiro e de gestão do Rio de Janeiro, onde aposentados e funcionários públicos não recebem os salários em dia, porque o estado literalmente quebrou. Sérgio Cabral é o tipo de político incensado pelo presidente Lula e Dilma, mas que usava o cargo para enriquecer junto com a família. A cara de paisagem que ele faz nas audiências com o juiz do Rio de Janeiro, quando inquirido sobre os desvios, mostra bem o personagem que durante os últimos anos comandou o estado e esteve por trás das festas que comemoraram a escolha do Rio, como sede das Olimpíadas. O triste legado da Copa do Mundo e das Olimpíadas foi a falência de vários estados e um rombo nas contas públicas superior a R$ 150 bilhões.
Violência nas escolas
"Ele sofria bullying, o pessoal chamava ele de fedorento, pois não usa desodorante. No intervalo da aula, ele sacou a arma da mochila e começou a atirar. Ele não escolheu o alvo. Aí todo mundo saiu correndo". (Relato de um estudante, da escola Goyases, de ensino infantil e fundamental, de Goiânia).
Uma crise que poderia passar despercebida, mas acabou nas manchetes foi a crise na educação, particularmente nas escolas públicas da periferia. Os alunos se envolvem em tantas situações esdrúxulas que corremos o risco de estar criando uma geração que não se indigna mais, quando vê escândalos muito próximos. Quase no fim do ano, o país foi abalado por pelo menos duas tragédias que chocaram os brasileiros.
No município de Janaúba (MG), um vigia, provavelmente num surto psicótico, jogou álcool e incendiou crianças e professores que estavam se preparando para uma festa. 12 pessoas morreram, a maioria crianças e incluindo o próprio vigia, que se suicidou. Em Goiânia, uma violência estúpida e bastante improvável, pelo menos até agora no Brasil. Um aluno que – segundo versões de colegas – sofria bullying no colégio privado, trouxe um revólver do pai (policial) de casa e atirou em vários colegas, matando dois, os estudantes João Vitor Gomes e João Pedro Calembro, de apenas 12 anos, e ferindo quatro outros colegas. O atirador foi preso e segundo informações de colegas, ele tinha ameaçado alguns colegas, quando foi ofendido.
Essas duas tragédias foram apenas algumas entre tantas crises que atingiram universidades e escolas públicas e privadas, pelo país. A maioria sofreu com greves prolongadas, e protesto de professores, o que fez o ano letivo se estender até 2018. Invasões e afronta a reitores e professores se tornaram uma rotina nas escolas brasileiras.
Finalmente, o registro de uma crise que foi mal administrada por quem denunciou e por quem foi denunciado. A Operação Carne Fraca da Polícia Federal, quando grandes frigoríficos foram denunciados, foi anunciada com mais estardalhaço do que devia. Grandes frigoríficos foram colocados sob suspeita e, imediatamente, repercutiu no exterior, fazendo vários mercados internacionais suspenderem a importação da carne brasileira. Precisou muita habilidade do Ministério da Agricultura para em 15 dias tentar amenizar o estrago reputacional do setor. Alguns frigoríficos realmente tinham culpa no cartório. E, nas entrelinhas da investigação, apareceram denúncias graves, como a influência dos frigoríficos no Ministério da Agricultura, ao escolher servidores que ficariam responsáveis pela fiscalização das unidades. Executivos da BRF (Sadia e Perdigão) tinham acesso a senha pra entrar no sistema dos processos do MAPA. Típico caso da raposa tomando conta do galinheiro. Uma crise que arranhou o setor, com erros de todos os lados.
Fotos: Rivânia Rogéria dos Ramos, 8 anos, salvando seus livros em enchente, no povoado Várzea do Una, em São José da Garoa(PE) - Divulgação/Pel Lages; manifestação de policiais e bombeiros, Natal, reprodução; Rodrigo Rocha Loures, reprodução Globo News; Creche incendiada em Janaúba-MG.
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