Esse verdadeiro estado policial em que delegados da Polícia Federal recebem senhas para grampear quem desejarem, talvez só encontre paralelo hoje na China, onde ninguém está seguro sequer para conversar em ambientes públicos. O objetivo dessa devassa nas conversas alheias, seria facilitar o trabalho de investigação, se defendem os juízes.
O problema é quem controla os limites desse festival de grampos. O próprio presidente do STF, Gilmar Mendes, defende um maior controle sobre as ações da PF, principalmente em relação às interceptações telefônicas. Os partidários da liberação geral argumentam que só assim a PF tem condições de aprofundar as investigações. O problema é saber como e para que essas gravações são utilizadas e até que ponto pessoas sem acusação formal têm sua privacidade invadida.
É por isso que um burocrata da Caixa Econômica Federal se achou no direito, em 2006, de escarafunchar a conta corrente do caseiro Francenildo dos Santos Costa, para obter provas a favor do chefe, e deu no que deu. A imprensa sempre apressada, publicou os dados sem saber que haviam sido obtidos de forma ilícita e atropelando a lei. Como a mídia vive desses furos, criou-se no país o hábito de que tudo é permitido, não havendo limites para quebra de sigilo, seja ele fiscal, telefônico ou bancário.
Na CPI do apagão aéreo, os senadores da oposição haviam aprovado a quebra de sigilo bancário, telefônico e fiscal da diretoria da Infraero do governo Lula, que estava sendo investigada. Em represália ou apenas para brincar de investigação, os senadores governistas arrebanharam uma maioria, que nunca comparecia às sessões da CPI, e foi lá apenas para aprovar a quebra dos sigilos de todos os membros das diretorias da Infraero dos dois governos FHC.
Foi apenas um capricho dos governistas, pois as diretorias anteriores não eram objeto da investigação. Alguém viu algum resultado prático nessa tão nobre decisão, que contribuísse para melhorar o caótico transporte aéreo brasileiro? Imaginem o trabalho que deu para bancos, operadoras de telefonia e Receita Federal reunir todas essas informações. Muito provavelmente, esses dados nunca foram vistos. Se o próprio Senado dá o exemplo de que pode brincar com quebra de sigilo, o que esperar do Congresso para assegurar os direitos invioláveis do cidadão?
Agora, a Câmara dos Deputados está provando do próprio veneno. As 17 operadoras de telefonia fixa e móvel conseguiram uma liminar no Supremo Tribunal Federal, obtendo o direito de preservar os nomes dos clientes que foram alvo de escutas telefônicas em 2007 e que estão em segredo de justiça.
Como esses dados permitem a identificação de todos os clientes com contas monitoradas, as empresas, com razão, estão com receio de que a transferência do sigilo para a CPI acabe vazando, como sempre tem acontecido. Se a sociedade está esperando que esses dados ajudem a CPI a apurar alguma coisa de útil, pode descansar. Apesar da garantia do presidente da CPI dos grampos, alguém tem dúvida de que esses dados irão parar na imprensa no dia seguinte?
A CPI dos Correios era um verdadeiro queijo suíço. Todos os sigilos transferidos para aquela CPI acabavam vazando, dependendo do interesse dos grupos que se digladiavam. O que a CPI pedia era transferência de sigilo, conforme prevê a lei. O que acontecia, na prática, era quebra de sigilo: um crime, portanto. Como as operadoras aprenderam na CPI dos Correios, agora estão colocando as barbas de molho.
Como a quebra de sigilo virou barganha política e vitrine para o senador ou deputado aparecer na imprensa, talvez por isso o agora acusado Daniel Dantas também se achou no direito há quatro anos, de contratar a Kroll para fazer espionagem industrial no interesse dos seus negócios. A Polícia Federal desencadeou a operação Chacal, no meio da guerra que ocorreu desde 2000 entre a Telecom Italia e o grupo Opportunity, pelo controle da Brasil Telecom. O escândalo só veio à tona, porque chegou perto demais do Planalto, quando o ex-ministro Luis Gushiken foi grampeado pelos arapongas da Kroll.
Agora ficamos sabendo que a Justiça deu poderes aos delegados da PF, por meio de uma senha, de bisbilhotar a linha que quiser. Ou por acaso a Justiça está fiscalizando, recebendo relatórios ou justificativas de quais as contas e por que foram grampeadas. Segundo foi divulgado, as operadoras teriam alertado o juiz que autorizou as escutas sobre as dificuldades de se verificar se as informações acessadas por meio de senha cumpriam a ordem judicial.
Será que a PF tem o controle absoluto de quem foi grampeado? Se a Justiça autoriza senha, embora com a ressalva de que é apenas para obter dados de interlocutores que ligaram para os investigados, qualquer pessoa que tenha cruzado essa rede pode estar grampeado. É por isso que esse festival de grampos, acaba vulgarizando até mesmo as investigações. Qualquer cidadão, mesmo não investigado, pode ser monitorado pela PF. Isso até facilita a defesa dos acusados, quando quiserem melar uma investigação.
A 6ª. Vara Criminal de São Paulo informou que “a decisão sempre foi fundamentada e estipula limites para a utilização de senhas”. Entidades que representam magistrados, procuradores e advogados são contra a liberação de senhas para policiais monitorarem ligações. O jurista Célio Borja, ex-ministro do STF diz que se uma pessoa não passível de responder por conduta penalmente punível é investigada à sua revelia, trata-se de uma violação de sua privacidade.
O exemplo vem de fora
Recentemente na Inglaterra a imprensa começou a questionar o armazenamento de dados feitos por lojas e varejistas, quando alguém compra por meio de cartão de crédito fidelidade. Todos os passos dos consumidores estavam sendo monitorados por uma cadeia de supermercado. Isso também acontecia com locadoras, que instalavam GPS nos carros alugados, sem que o motorista soubesse. Assim, qualquer empresa se achava no direito ou estava em condições de vigiar os passos do usuário à sua revelia. Entidades de proteção ao consumidor chiaram.
A mais recente invasão de privacidade vem da China, especialista em vigiar os passos deles mesmos e dos estrangeiros. Empresas de táxi admitiram que qualquer conversa pode ser monitorada nos táxis chineses. Microfones, instalados para segurança do motorista, nos 70 mil táxis chineses, podem ser usados para ouvir conversas à distância. A denúncia foi feita pelos jornalistas Shai Oster e Gordon Fairclough, do The Wall Street Journal . Assim como as câmeras digitais usadas em Londres e Nova York, o objetivo oficial dos microfones seria proteger os taxistas. Mas os motoristas admitem que as conversas podem ser gravadas.
Não é à toa que o Departamento de Estado dos EUA alertou os turistas americanos de que nenhum lugar na China está imune à escutas. “Não existe privacidade em locais públicos ou privados. Quartos de hotel, residências ou escritórios podem ser acessados a qualquer momento sem consentimento ou conhecimento do ocupante”, diz a nota. Os americanos devem saber como ninguém do que estão falando, pois desde o 11 de setembro, também lá bisbilhotar os outros virou paranóia.
Não precisou ir muito longe. A liberalidade com a privacidade telefônica e a prerrogativa de delegados da PF ouvirem as ligações de quem quer que seja, chancela o estado policial que George Orwell nos mostrou na sua antológica obra 1984 e a gente pensava que era uma licença literária. Se alguém pensava que a paranóia do excelente filme alemão A vida dos outros , de Florian Henckel von Donnersmarck, era exagero da ficção, não duvide. É bom procurar os parques da cidade para conversar. Desde que não haja árvores e carros por perto.
Você já comprou a malinha para grampear?
Depois que as revistas semanais começaram a divulgar a ciranda em que se transformou a indústria do grampo no Brasil, parece que não há limites empresariais ou privados para se saber da vida do outro. A revelação pela revista Veja (03/09/08) de que conversas do Presidente do STF, Gilmar Mendes, e do Senador Demócrito Torres foram grampeadas, reproduzidas na revista, foi o estopim que desencadeou um princípio de crise no governo. Desta vez, o presidente da República agiu rápido, afastando a direção da ABIN - Agência Brasileira de Inteligência.
A partir daí o país ficou sabendo que não apenas a ABIN tem uma malinha mágica que pode grampear quem quer que seja. O Exército e a Polícia Rodoviária também teriam. A Polícia Federal deve ter. E talvez o seu vizinho também tenha. Resultado: questiona-se se o afastamento da direção da Abin não teria sido precipitado, já que todo mundo possui a malinha e a gravação poderia ter sido feita por qualquer um que tivesse interesses em jogo. Isto é, desconfia-se de todo mundo.
Desencadeou-se no país um debate intenso sobre os tentáculos que ainda existem do extinto SNI, que grampeava e fotografava todo mundo, fazia fichas com interpretações subjetivas e não dava satisfação a ninguém. Falou-se muito, ministros deram declarações apenas retóricas, mas de prático até agora não se apurou nada. O presidente da República e outras autoridades repudiaram a prática, mas continua tudo como antes. Até agora declarações evasivas do Ministro que chefia a Abin não demonstra a intenção de apurar com seriedade se houve ou não grampo da Agência. O Senado faz sua apuração paralela.
Enquanto isso, os contribuintes, que não entram nessa briga, só têm que tomar cuidado quando falarem ao telefone, porque não existe nenhuma garantia de que haja privacidade. Como se não bastasse a vulnerabilidade dos e-mails, passíveis de serem abertos na empresa ou no provedor, o telefone poderia ser, no entendimento leigo dos usuários, um dos últimos lugares em que se poderia conversar com privacidade. Era. Assim como na ficção, nós corremos um grande risco de ouvir nossas conversas reproduzidas em algum programa de pegadinhas na TV ou no rádio. Sem saber quem gravou, tantas são as maletas que perambulam pela Esplanada dos Ministérios.
Comentário do autor
A primeira parte deste artigo sobre a liberalidade com que são grampeados telefones no Brasil foi escrita em 6 de agosto. O tema explosivo acabou rendendo matéria de capa da revista Veja 2073, de 13/08/08, além de artigo no site Observatório da Imprensa. O assunto também havia sido abordado pela Revista Época, em 2007. A matéria da revista Veja não apenas desencadeou a crise, mas escancarou os grupos de poder que se digladiam na comunidade de informações, cujos expoentes são a Abin e a Polícia Federal. Em 10 de setembro, a revista Istoé também traz matéria de capa com a informação de que foi o agente aposentado da Abin Francisco Ambrósio do Nascimento quem ajudou o Delegado Protógenes na operação Satiagraha. O que significa uma ilegalidade. O pior de tudo isso, é que essa liberalidade pode custar caro à operação Satiagraha. Os advogados de Daniel Dantas podem avocar a nulidade do processo, pela ilegalidade de terem usado alguém não pertencente aos quadros do governo.
Certamente pela polêmica gerada, as escutas telefônicas não sairão da pauta. Existe uma CPI no Congresso Nacional que apura os abusos nas autorizações para grampos em telefones. Pela gravidade do tema e os desdobramentos, a imprensa continuárá acompanhando os próximos capítulos.