Francisco Viana**
Vamos deixar de lado as delações da Odebrecht e o envolvimento da chamada elite política da República, se é que podemos assim chamar o Brasil; vamos deixar de lado a crise econômica e seus milhões de desempregados silenciosos; vamos deixar de lado a falência, por endividamento, dos estados brasileiros. Vamos nos concentrar numa expressão cotidiana que explica bem o espírito do tempo em que vivemos, o ano da graça de 2017: “vamos viver o dia de hoje, esquecer o amanhã”, ou seja, vamos abandonar toda utopia, todo o sonho de uma vida melhor.
Será possível viver apenas o hoje? O pragmatismo é uma corrente de pensamento que ficou famosa graças ao filósofo norte-americano William James (1842-1910) e conquistou adeptos na Inglaterra, Alemanha, França e Itália, pelo fato de caracterizar uma filosofia da ação. Professor de Harvard, ensaísta e escritor fértil e original entendia que o problema do filósofo – a procura da racionalidade ou da compreensão da unidade das coisas – tinha raízes nos sentimentos humanos vivos. Quer dizer, na racionalidade considerada em si mesmo, não numa visão impessoal, abstrata e imóvel, encarnando concretamente situações reais da vida.
Não é aconselhável, por exemplo, considerar pragmática a decisão de Odebrecht em aderir ao sistema de propinas, já que estas eram as regras do jogo ou se acreditar acima da lei, se estas possam inibir determinadas atitudes. E muito menos não é racional pretender ser capitalista virando as costas para a construção da confiança.
Ser pragmático é, segundo James, analisar continuamente um problema sem abandonar nenhum dos seus ângulos. Essa é a essência do pragmatismo como filosofia da ação, a mutação constante, do particular concreto, mas que não significa curvar-se à ilegalidade. Ou mesmo à realidade, mas sim transformá-la.
Ser pragmático, não significa partir de um ponto de vista remoto, mas pensar em termos de ação. No caso da Odebrecht, o que existiu foi uma simples adaptação. Se pragmatismo houve, foi agora – depois que a crise de quebra de confiança da sociedade se instalou – com as delações premiadas. Isso sim pelo relacionar-se com situações vivas e, ao mesmo tempo, contribuir para mudanças de um estado de coisas – a imposição do Caixa 2. As denúncias, certamente, farão diferença nas situações da vida real. Como farão diferença as delações que estão a caminho.
Voltando à ideia de viver apenas o hoje. Parece também ser pragmático, mas não é. A utopia, o sonho, a esperança, pressupõem incertezas. Igualmente, pressupõe tomar posse da vida, construir o impossível, agir mesmo se não der certo. Ser senhor do próprio destino. No Brasil dos nossos dias viver apenas o hoje soa como um realismo caricato. Uma fuga para um arremedo de pragmatismo.
O Brasil nunca testemunhou espetáculo tão estarrecedor quanto a denúncia da empreiteira Odebrecht. Nem viu quantias tão colossais destinadas ao pagamento de propinas, com o envolvimento de personalidades tão reluzentes. O que a mídia repete todos os dias, baseada nos acontecimentos da realidade é: o sistema representativo faliu. A ética se evaporou. E não é monopólio de um partido. Mas dos principais partidos. A palavra ordem de hoje é frustração, sob todos os ângulos. Os comunicadores estão diante de um desafio nunca visto. A corrupção é como um veneno que se espalha. Corrói, indistintamente, o tecido econômico. O que fazer?
A reinterpretação sistemática da situação à luz do individualismo é uma forma particular de mecanização da vida que ganha forma precária porque solitária. Parece o caminho mais fácil, é o mais difícil. Significa virar as costas à utopia. Se a utopia, o sonho, é imprevisível, a distopia é previsível. Não leva a lugar nenhum. É um niilismo como é viver o dia após o outro. Sem sonho não há futuro e sem futuro não há vida.
O sonho, a utopia, o amanhã, são caminhos para reencontrar a esperança e em consequência alternativas ao niilismo. No Brasil de hoje, viver o dia-a-dia é preciso, sonhar também é preciso. Como é preciso entender o sentido da confiança. Sem confiança não há como o Estado sobreviver, nem os negócios, nem os indivíduos. Vida é sonho.
* A máxima que dá título à peça homônima de Calderón de la Barca, impressa em 1636, em Madri.
**Francisco Viana é jornalista e doutor em Filosofia (PUC-SP).