bandeira do brasilFrancisco Viana*

"Poder renunciar a algo que nos faz mal é prova de força vital" (Robert Musil, "O homem sem qualidades").

A temperatura política no Brasil está em desarmonia com a temperatura das ruas. Em meio ao governo, predomina a ideia de que o sol volta a nascer e que as variações do brilho da lua - leia-se as ameaças de impeachement da presidente - se diluíram em meio ao acordo de governabilidade com o PMDB e que, por este caminho, a solução para a crise econômica não vai tardar. Aliás, a política parece, nesse momento, se sobrepor à economia e parece, também, grassar a crença de que as reformas na superestrutura da sociedade podem ser adiadas indefinidamente.

Não é só uma avaliação incorreta. É, sim, incompleta, absolutamente incorreta e incompleta. Falta antecipar o humor das ruas. Se no ambiente político não falta agitação, como se a história caminhasse em linha reta como uma tacada de bilhar, nas ruas predomina o quase silêncio. Claro, há manifestações contra e a favor do governo, mas nada que envolva grandes massas. Acontecerão manifestações colossais? Serão violentas? Serão pacíficas? Que consequências trarão?

Ninguém sabe. Sabe-se que são feitos acordos pelo alto, mas em função de um modelo que se esgotou. É o que diz a oposição? Não. A oposição não tem projeto. Impeachment não é projeto. E, além disso, as denúncias de corrupção, à semelhança de um gigantesco cupim, vêm corroendo por dentro o espírito dos chamados oposicionistas.

Por que não se procura medir a temperatura das ruas? Isso exigiria ações concretas, exigiria reconhecer que os acordos precisariam ser apenas uma introdução para encarar o momento presente. E que as relações Estado-sociedade exigem mais do que ganhar tempo. Exigem ação para acompanhar os humores da sociedade. Sem ação construtiva, o pessimismo irá crescer e, cedo ou tarde, as insatisfações irão explodir.

Criamos uma sociedade egoísta, uma sociedade que pensa no outro apenas no discurso, mas que sofre por saber que precisa mudar e não muda. Essa é a matriz da insegurança: sofre-se porque se é extremista, mesmo sabendo que a verdade está no meio. Por que culpar o PT por todos os males? Por que não vislumbrar que o país, no conjunto, está sendo consumido pelos venenos da corrupção, da violência e de um cotidiano cada vez mais infeliz e repressivo?

O PT não é o mal absoluto. É, sim, parte do mal: prometeu muito, realizou pouco. O drama é, na sua extensão, muito maior. O Brasil lembra a Kakânia, cidade-personagem de “O homem sem qualidades” de Robert Musil. Nela, a Constituição era liberal, mas se vivia sob o regime clerical. Nós temos uma constituição cidadã, mas vivemos um regime de ditadura econômica: os impostos nos sugam a vida e nos transformam em escravos do Estado. Não adianta reclamar. Entra governo, sai governo o cenário só faz piorar. Como na Kakânia, há um parlamento, mas o regime é absolutista: aqui, os parlamentares em lugar de desmontarem, reforçam a máquina do Estado e a verdade é que esta só faz crescer.

A repulsa do cidadão transmite a utopia do sentimento comunitário, mas, na prática, o parlamento faz de conta que a repulsa do cidadão não existe e vai levando a vida. O drama da Kakânia, aquilo que levou o país ao fim, foi o fato de ser considerado um país de gênios. Não era. Nós nos consideramos o país do jeitinho. Não somos. Está claro de que não existe jeitinho, mas ninguém quer parar para acertar o novo e recomeçar. É claro que desse jeito não vai dar certo. Mas quem deseja ouvir?

A mudança precisa ser de alto à baixo. Poderia muito bem começar pelo PT, que pode acordar para a realidade de que promessas devem ser feitas, mas principalmente serem cumpridas. Isso é doença infantil da política tradicional. O brasileiro, em sua grande maioria, não votou no PT por ser petista, mas por aspirar mudanças, por cultivar a utopia da vida feliz. A verdade é que a realidade tornou-se uma peça ruim. Repete os mesmos papéis, as mesmas tramas já conhecidas, não há nova urdidura. Sonhou-se com uma Arcádia para todos. Acordamos diante de brutal realidade. Uma grande autocrítica pública faria muito bem, seria muito melhor do que pactos políticos artificiais, feitos para não durar. Ou, na melhor das hipóteses, durar pouco. Pouquíssimo.

* Jornalista e. Doutor em Filosofia Política ( PUC-SP)

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