Há mais de um ano, o País assiste com misto de espanto e repúdio a narrativa quase diária dos descalabros ocorridos na Petrobras. Para alguém menos informado, pode parecer que os desvios na Petrobras e todas as ramificações da fraude representariam a crise mais grave do país, atualmente, tamanha a facilidade com que dirigentes da empresa, empresários e operadores se apossaram de bilhões de reais de recursos públicos. Tudo isso, amplificado por ampla cobertura da mídia nacional e internacional ao escândalo.
Não é bem assim. O que ocorreu na Petrobras representa apenas a ponta do iceberg das crises que permeiam a gestão atual do Brasil. Estamos há meses enfrentando três crises graves: econômica, política e institucional, para ficar apenas nessas três dimensões que afetam a gestão pública. Sem falar nas crises de ética, de confiança, de credibilidade.
No escândalo de desvios e propinas da Petrobras, já foram reconhecidos prejuízos à empresa da ordem de R$ 6 bilhões, podendo chegar a R$ 10 bilhões. Para se avaliar a crise, vamos imaginar um cenário hipotético: se não tivesse acontecido o assalto à Petrobras, o Brasil estaria em melhor situação? A empresa estaria bombando no mercado? Teríamos uma inflação menor? O dólar estaria num patamar palatável? A economia poderia estar pelo menos no zero a zero, fora da zona de rebaixamento? Os níveis de emprego estariam estabilizados? O governo poderia levar ao Congresso um orçamento sem o déficit de R$ 30,5 bilhões?
Infelizmente, a resposta é “não”. Sem dúvida, a crise da Petrobras é grave e escancarou o maior esquema de corrupção da moderna história do país. Provocou um estrago na reputação da empresa que levará muitos anos para ser consertado. Manchou a imagem do país no exterior. Deu prejuízo a inúmeras empresas, que dependiam da Petrobras para continuar funcionando. E não estamos falando de empresas de fundo de quintal. São grandes empreiteiras (cúmplices ou não do esquema), fornecedores, investidores, acionistas. Além do efeito mais perverso da crise: milhares de trabalhadores demitidos em função da má gestão, que redundou na incapacidade de a Petrobras manter contratos, pagamentos e projetos.
Laboratório de crises
Se a corrupção fosse reduzida, o país estaria em melhor situação? Até poderia estar. Mas o maior problema do Brasil hoje, que agravou a crise e o transformou num autêntico laboratório de estudos de gestão de crises, foi a incompetência da gestão pública, principalmente. Apenas com a irresponsável bondade de manter o preço da gasolina congelado, para incentivar a compra de carros, fazer média com a classe trabalhadora, durante anos, e também para não prejudicar a eleição, a perda da Petrobras foi de R$ 80 bilhões, segundo consultorias especializadas.
Há um consenso internacional de que os “erros de gestão” representam 80% das crises corporativas e públicas no mundo. Basta recordar a triste tragédia lembrada pela mídia internacional, há poucos dias, o furacão Katrina, o maior desastre natural dos EUA dos últimos anos, ocorrido em 2005. Tudo ali foi um desastre, que causou 1.833 mortos, dezenas de desaparecidos, e prejuízo de US$ 100 bilhões, basicamente por erros de gestão. Não foi a natureza que agravou a tragédia de Nova Orleãs. Mas sim a péssima gestão do governo Bush. Uma sequência de erros em cadeia.
Por que as notícias no Brasil, hoje, parecem sempre ser piores do que as do dia anterior? Qual o sentimento e a disposição do brasileiro para lutar contra essa crise? Há uma incômoda sensação de derretimento econômico, patrimonial, ético e reputacional do país, como se estivéssemos ao pé de um vulcão vendo o rio de larva escaldante vindo em nossa direção e, impotentes, só nos restaria esperar a destruição de nossos pertences, nossa casa, nossa cidade. E, pior, sem avistarmos comando e ações de socorro confiáveis.
Mergulhado na crise, o governo administra por espasmos, anunciando factoides como, por exemplo, corte no número de ministérios e de cargos em comissão, sem dizer quais, como e quando. Sugere a recriação da CPMF, como forma de tapar o buraco criado exatamente pela sucessão de erros de gestão dos últimos anos, principalmente do primeiro governo Dilma. Alguns dias depois, esses factoides viram pó, registro de pé de página na mídia, até porque foram detonados no nascedouro, por não terem qualquer substância ou porque foram gestados sem estudos de viabilidade. Na base da tentativa e do erro.
Agora, a população descobre (o que os analistas cansaram de prever) que o país está quebrado e o governo passou a conta para o Congresso resolver. Ela chegou, e pesada. Jogou-se muito dinheiro fora. Em projetos feitos quase sempre com o viés do marketing e do improviso, não da economicidade ou da viabilidade. Basta ver as refinarias lançadas com pompa pelo ex-presidente Lula, muitas delas, como a do Maranhão, que nem saíram do papel. Sem falar dos megaprojetos como a Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco; o Complexo Petroquímico (Comperj) e as obras da Usina Angra 3, no Rio de Janeiro; a transposição das águas do Rio São Francisco; a interminável ferrovia Norte-Sul; ou projetos suspeitos, como a construção e operação de navios-sonda na África e no Golfo do México, contratados sem licitação, que deram prejuízo de R$ 4,3 bilhões à Petrobras, e renderam propinas a operadores, multinacionais e diretores.
Foram bilhões desviados ou perdidos por obras monumentais que, hoje se sabe, ajudaram a alimentar um esquema de corrupção, com grandes suspeitas de que desaguaram na campanha da presidente, ano passado, ou sabe-se lá onde mais. Mesmo onde até agora não se confirmaram ilícitos, foram projetos que acabaram consumindo volumosos recursos, sem que houvesse a contrapartida para a população. O que inclui obras faraônicas, VLTs que não funcionam e estádios para a Copa do Mundo, verdadeiros elefantes-brancos, como os de Brasília, Cuiabá, Manaus e Fortaleza.
A torneira aberta de recursos abundantes para a Copa, que certamente contribuiu para o déficit atual, junto com as obras das Olimpíadas, nos traz à lembrança o fantasma da Grécia, que começa a nos assombrar. Analistas sensatos alertaram na época do Brasil grande de Lula, comemorando o anúncio com Sérgio Cabral, o custo de uma Copa do Mundo ou das Olimpíadas. Não foi por falta de aviso.
Para qualquer lado que se olhe - e a imprensa está povoada de denúncias nesse sentido - a área pública sobressai como um verdadeiro laboratório de gestão de crises. Governo federal, governadores e prefeitos, não importa o partido, escorregam na gestão, não apenas por descumprirem o que prometeram, mas sempre por gastar demais; e correm para Brasília para pedir dinheiro. Pode ser na fracassada gestão energética do país; ou na crise de abastecimento de água em S. Paulo. Contempla as contas do Rio G. do Sul, quanto as do Distrito Federal, herança de governos anteriores que fracassaram na gestão dos recursos públicos e deixaram cofres vazios. Antes não havia dinheiro para obras, merenda escolar, remédios, agora falta para salários. Pode ser na herança maldita dos Sarney, que transformou o Maranhão no estado mais pobre do país. Ou na de Alagoas, o estado com maior índice de violência.
Não faltam estatísticas negativas para mostrar como a gestão pública no Brasil fracassou. A educação continua a apresentar índices vergonhosos, quando comparada com a de países menos desenvolvidos do que o Brasil. A segurança pública nos coloca no nível dos países mais violentos do mundo. E a saúde pública continua em estado grave. Mesmo os planos de saúde precisam o tempo todo ser monitorados, porque buscam brechas na lei para ludibriar o usuário, principalmente os idosos.
O sinal do fracasso
De tanto ler, ouvir, ver, o leitor já conhece de cor esse roteiro. O esporte preferido do Brasil hoje é discutir a crise e malhar o governo. E não se trata de preferência política ou de classe social. Os índices de aprovação da presidente mostram essa realidade. Não sem razão. Erros sucessivos levaram a esse descalabro e não precisamos fazer muito esforço para ler diariamente na apelidada “mídia golpista” artigos que vão de intelectuais a economistas, analistas políticos e jornalistas a professores das universidades, empresários e quantos estão preocupados com o futuro do país.
E o que dizem esses artigos? Pelo tamanho da crise, só um estadista estaria em condições de tomar a frente de um projeto de curto e médio prazos para recuperar o Brasil. Ou algo como “o governo não tem a menor condição de resolver a crise sem descer do salto alto”, segundo o cientista político Murilo de Aragão. E declarações mais radicais: "a presidente perdeu as condições de governabilidade”, como já parece ser um consenso no país ao se fazer uma leitura das reuniões que ocorrem em S. Paulo com empresários, com ou sem a presença do Vice-Presidente. Existe algo mais emblemático do que o jurista Hélio Bicudo, fundador do PT, entrar no Congresso com um pedido de impeachment à presidente Dilma?
Mas convém se deter no que parece essencial na origem dessa crise. Descarte-se a crise internacional, um álibi sempre lembrado para fugir da responsabilidade. Os culpados estão aqui, muito perto e continuam dando as cartas na política econômica. Isso é o que preocupa. Alguns, meio tímidos pelo momento, continuam aí a defender as teses que, na prática, não deram certo; a incomodar quem quer arrumar a casa, evidente no boicote de colegas da Esplanada e do partido do governo ao ministro da Fazenda, Joaquim Levy; a inaugurar projetos autopromocionais, sem a garantia da conclusão; e a participar de encontros ou manifestações, onde comparece uma claque paga com dinheiro público disposta a desafiar e confrontar quem ousar protestar ou criticar. Pior ainda: criticar o governo passa para a categoria de tentativa de "golpe", como se um governante fosse vacinado contra críticas apenas porque possui um mandato. Quando o "golpe", se levado ao pé da letra, foi exatamente aplicado por aqueles a quem os brasileiros delegaram poderes para conduzir o país para um porto seguro, e o estão levando em direção às rochas numa noite de tempestade.
No salve-se quem puder, cada categoria tenta resolver os próprios problemas. Talvez isso explique greves nas universidades federais há mais de dois meses; no INSS há três meses, submetendo o trabalhador a protelar a aposentadoria para 2016; movimentos pipocando no ABC paulista, no funcionalismo público e na área da segurança; e, no Congresso, parlamentares estarem mais interessados na liberação de suas emendas do que no túnel escuro em que o país se meteu.
A máquina pública foi inchada nos últimos anos, quando os cargos de assessoramento superior cresceram 22%. Vinculados à presidência da República existem mais de 18 mil servidores. Há empregados sendo contratados para atendimento em guichês com salários iniciais superiores a R$ 7 mil. Sem metas, com horário flexível, vale alimentação, plano de saúde e outras benesses, como se os recursos financeiros do país surgissem por geração espontânea. Um dia a conta desse "almoço" servido fartamente a partir do governo Lula, apareceria. E quem vai pagá-la? No Rio G. do Sul, 40% dos professores estão fora da sala de aula, em licença ou em outros órgãos. Tornou-se rotina na máquina pública o não cumprimento de horários, de médicos a burocratas. Porque não há gestão. O chefe também chega atrasado. E o superior não cobra. Até porque, com greve ou sem greve, atrasados ou não, eles continuam recebendo religiosamente os salários.
Aumentar a carga tributária parece ser a única coisa que o governo pensa rapidamente, quando se vê no meio da crise. Detonada a ideia maluca da CPMF, o governo se apressou em reajustar várias alíquotas de impostos, das bebidas aos equipamentos eletrônicos. Esqueçam a festa de anúncio da isenção de impostos para tablets e seus parentes mais próximos. E quem acha que um novo imposto não vem, espere até os burocratas do fisco acordarem. A presidente quer. É só acenar com umas cenourinhas em forma de emendas que o Congresso aprova. E você certamente será convidado a pagar.
Os erros sucessivos do governo - e não foi por falta de alerta - criaram uma situação insustentável, a ponto de se discutir hoje nos botequins ou ônibus e metrôs abarrotados se a presidente teria condições de, mantida no poder, resolver minimamente a crise do país. Quando a população no meio de uma crise coloca em dúvida a capacidade do líder em resolvê-la, quando os súditos não querem sequer ouvir o líder e estes perdem aquilo que é essencial para liderar, a confiança, significa, como diz o General Colin Powell, ex-comandante das tropas dos EUA no Iraque, que você (líder) já deixou de comandá-los.
E, numa crise grave, a falta de comando, a falta de confiança, a falta de gestão são os grandes sinais do fracasso.
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