A Grécia acaba de dar uma guinada à esquerda, cansada dos últimos anos de arrocho, desemprego, restrições de crédito e até fome. Sim. Reportagem do The Times, de Londres, publicada na semana passada, mostra como a crise econômica castigou um dos países mais charmosos do mundo, berço de uma cultura clássica milenar. Como cultura, história e paisagens paradisíacas não resolvem crise econômica e financeira, o povo grego, como sempre, se tornou vítima de governantes incompetentes, modelo econômico falido e gastos públicos exorbitantes.
A reportagem de Tom Kington and Anthee Carassava diz que milhares de atenienses famintos fizeram fila no refeitório da Rua Pireos, ao longo dos últimos cinco anos, mas um visitante recente resumiu como a austeridade esmagou a Grécia e a tornou, mais uma vez, uma fonte potencial de caos financeiro na Europa.
"Um homem veio para a fila da alimentação, mas como as doações diminuíram, tínhamos apenas água, refrigerante e iogurte para oferecer", disse Eleni Katsouli, que tem servido centenas de milhares de refeições quentes na cozinha, bem como distribuído sacos de mantimentos, nos últimos anos na Grécia. "Ele simplesmente disse: ‘Mas eu estou com fome’, e o que me chamou a atenção foi que ele falou bastante educadamente. Não estava com raiva."
Eleni acrescentou: "As pessoas costumavam ficar com raiva, mas agora elas são apenas gratas e esse é o problema. Elas tinham carros, empregos e casas, mas agora elas estão felizes em conseguir leite ". Teria a crise levado os gregos a um estado de resignação?
Segundo o The Times, do grupo News Corporation, de Ruperth Murdoch, que reza pela cartilha conservadora da União Europeia, “nas eleições realizadas há uma semana, os gregos rejeitaram as medidas de austeridade impostas em 2010 pela Europa e pelo FMI, quando uma economia de 240 bilhões de euros gemia diante de uma dívida de 320 bilhões.”
Os candidatos do partido radical de esquerda Syriza se beneficiaram da frustração grega. Trata-se de uma coligação de marxistas, trotskistas e verdes, que venceram as eleições e assumiram o governo, graças às promessas de recontratação de funcionários públicos e eliminação dos novos impostos, sempre odiados por todos. É bom lembrar que a Grécia, forçada pela chamada troika (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional), foi obrigada a fazer pesados ajustes na economia, desde que o país entrou em recessão, há seis anos.
O preço dessa política econômica de austeridade foi deletério: demissão de milhares de funcionários públicos; cortes de investimentos, nos orçamentos da saúde, educação, infraestrutura. As restrições de crédito e o empobrecimento da população levaram também à falência milhares de empresas e pequenos negócios. O Syriza, que agora comanda o país, conseguiu maioria após fechar aliança com o pequeno partido nacionalista Gregos Independentes. E o maior desafio será renegociar a dívida com os credores internacionais, e pôr um fim na política de austeridade.
O grupo, que assumiu o poder com um discurso antiajustes, agora terá de mostrar serviço. Eles defendem a tese de que os cortes de empregos e o aumento de impostos foram os medicamentos que quase mataram o paciente. Um quarto da produção nacional desapareceu em seis anos. Milhares de famílias dependem de pensões para sobreviver e o índice de desemprego na faixa de 26%, - ou mais de 50% em relação aos jovens – colocou o país à beira do colapso, em pé de igualdade com o cenário americano da Grande Depressão. Mais de 30% da população está mergulhada na miséria. E os impostos têm um enorme impacto na classe média, afetada pelo desemprego.
Os pesquisadores David Stuckler, professor da Universidade de Harvard, e Sanjay Basu, da Universidade de Stanford, publicaram um instigante livro em 2013, The Body Economic – Why austerity kills”, dedicando um capítulo ao que eles chamam de “Tragédia grega”. Eles analisam a crise econômica, principalmente na Europa, cotejando com dados da Grande Depressão americana, sob o aspecto das consequências danosas para a saúde e a vida das pessoas. É um relato cruel e muito bem documentado das consequências da crise econômica no dia a dia dos cidadãos.
A análise dos pesquisadores, que atuam da saúde pública à medicina tradicional, concluiu que o sistema de saúde da Grécia faliu a partir de 2008. Citam alaguns exemplos: novos casos de infecção por HIV aumentaram 53%, entre janeiro e maio de 2011; o consumo de heroína cresceu 20%, levando a Organização Mundial da Saúde a considerar esse dado alarmante. De lá para cá, tudo piorou. Outra informação chocante citada no livro: além dos problemas de saúde física e mental terem piorado, a taxa de suicídios, principalmente entre homens adultos na Grécia, cresceu 20% entre 2007 e 2009. E, como a literatura sobre o tema preconiza, para cada suicídio, há pelo menos oito tentativas.
Por que a Grécia faliu
Segundo o The Times, “enquanto a economia do Reino Unido se recuperou da crise financeira de 2008, a Grécia, discretamente, parece pronta para implodir novamente. Antonis Samaras, o primeiro-ministro, tem insistido que três trimestres consecutivos de crescimento econômico no ano passado, é uma prova de que o programa de austeridade está finalmente gerando frutos. Lá na fila do refeitório, no entanto, as coisas estão ficando cada vez piores.”
Quem visitar a Grécia ou para lá viajar a negócios pode ter uma noção do que acontece olhando o cenário proporcionado pelo povo grego mais pobre pelas ruas. Mendigos, viciados, aumentou o número de pessoas que vivem da caridade, nas ruas.
“Todos os dias a senhora Katsouli e sua equipe entregam mais de 2 mil refeições quentes, há apenas alguns metros de uma esquina de rua suja, onde viciados fazem fila para comprar heroína. Há uma demanda crescente por pacotes de comida de pessoas que antes eram da classe média ateniense”, diz o The Times. "Em 2010 estávamos ajudando 2 mil famílias. Agora são 6 mil e esse número cresce a cada dia ", disse a Sra. Katsouli.
O líder do Syriza e agora primeiro-ministro, Alexis Tsipras, em campanha condenava a austeridade como "afogamento simulado fiscal". Ele pregou um programa de 12 bilhões de Euros para o bem-estar social, abrangendo vale-refeição, eletricidade gratuita para aqueles que não podem pagar, e ainda a criação de 300 mil postos de trabalho.
Os autores do livro “The Body Economic”, dizem que “a tragédia grega mostrou que a austeridade não salva uma economia da falência. Ao invés de ser parte da solução da crise, é parte do problema.” Eles condenam o arrocho preconizado pelos desenvolvidos, em países como Espanha, Portugal e Irlanda. E citam o oposto com o caso da Islândia. Mesmo na zona do Euro, o parlamento islandês se recusou a aprovar cortes de empregos e aperto fiscal. Ele não seguiu a cartilha do FMI e da Troika. E o país conseguiu atravessar o período mais difícil da crise sem grandes danos à saúde e às condições de vida da população.
O partido que ganhou as eleições na Grécia já está apoiando uma rede de grupos de ajuda, que cresceu a partir do movimento Occupy, na Grécia, e organizando clínicas médicas e mercados mais baratos para os novos pobres. Os novos líderes políticos acalmaram os mercados, que levaram um susto com a eleição do partido de esquerda, pela perspectiva de um calote na elevada dívida grega.
Segundo o The Times, como uma boa medida, Tsipras gostaria que a Grécia se esquivasse de pagar uma grande parcela de sua dívida (gerando temores de expulsão do país na zona do euro). Ele descartou essa possibilidade, mas não há dúvidas de que a ameaça de o país sair do Euro sempre existe.
No período que antecedeu a eleição, funcionários da chamada Troika - o Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia - se recusaram a dar entrevistas, apesar de um funcionário ter afirmado que "ser a favor da austeridade na Grécia agora é como ser pró-nazista durante a guerra ". Ou seja, até os fiscais do Euro perceberam que a dose de aperto na Grécia e alguns outros países, como Portugal, Espanha, Irlanda, Chipre foram muito amargas e não os ajudou a sair rapidamente da crise.
O The Times lembra uma cena ocorrida com Paul Thomsen, funcionário do FMI dinamarquês. Ele ficou abalado quando senhoras gregas da limpeza se manifestaram contra a perda de seus empregos cercando seu carro em Atenas e balançando-o com raiva.
Segundo o jornal londrino, “Os gregos não negam que eles tenham alguma responsabilidade pela sua situação. Quando o governo democrático retornou em 1974, depois de um golpe militar, empregos no setor público foram entregues para conquistar simpatia no país, elevando assim o déficit. A corrupção generalizada e o nepotismo então drenaram ainda mais a economia.”
Outro fator sempre citado como agravante do endividamento foi a realização das Olimpíadas, em 2004. Como um pai que recebe crédito fácil, e faz festas e distribui presentes aos filhos, para aparecer para os amigos, a Grécia gastou o que não podia para brilhar nas Olimpíadas, aproveitando-se do farto financiamento dos bancos europeus. Quando os atletas foram para casa, veio a conta. E com inúmeros elefantes brancos, utilizados nas Olimpíadas, em ruínas, até hoje a Grécia paga pelo que não podia gastar.
O exemplo de que nas crises econômicas são os mais pobres que sofrem vem contado por Andreas Popodakis. Nada pode desculpar o tratamento que sua mãe, uma paraplégica, recebeu. As autoridades cortaram suas pensões e benefícios sociais, o que tornou difícil o pagamento do sistema de oxigênio e do ventilador para mantê-la viva. Então, como as contas de energia elétrica não foram pagas, seu fornecimento foi cortado, levando sua mãe à morte.
"Todo mundo sabia sobre a sua condição", disse Popodakis. "Foi como um assassinato. Eles poderiam muito bem ter aparecido diante dela e ter colocado uma bala em sua cabeça".
O novo líder do governo grego centrou sua campanha principalmente na situação da classe média grega, que tem sido duramente atingida por impostos sobre a propriedade, este inspirado pela famigerada Troika, segundo os gregos.
Talvez o retrato mais emblemático da crise grega e de tantos outros países da Europa, após 2008, seja Maria. Segundo o The Times, “esperando na cozinha do refeitório para uma porção de alimentos, esta semana, Maria, de 44 anos, descreveu-se como uma típica garota de classe média. Pós-graduada em administração de empresas por uma universidade particular de Atenas, ela trabalhou para Oxford University Press e, em seguida, para a empresa de informática de seu marido, apenas para que ela fosse à falência quando a crise chegasse.
"Certa vez, gastamos 500 euros por mês para alugar uma casa de férias, enquanto agora eu levo para casa 10 euros por dia trabalhando para uma empresa de pesquisa", disse ela. "Esta crise acabou? Eu ainda não tenho dinheiro para o óleo de aquecimento e eu estou com frio ".
Segundo Tom Kington and Anthee Carassava, “Na Ermou Street, uma rua que uma vez foi a principal de compras de Atenas, Makis Kouzelis, professor de Sociologia da Universidade de Atenas, apontou para a poluição atmosférica sobre a cidade. "Isso é fumaça de madeira, porque as pessoas não podem pagar o aumento do imposto sobre o óleo combustível", disse ele.”
“Em torno dele, o senhor Kouzelis apontou para dezenas de lojas fechadas e pessoas sem abrigo que dormem na rua. "A Grécia é um país totalmente novo, onde comer lixo na rua é algo absolutamente normal", disse ele.”
A crise levou também a esperança
A mudança de governo não traz tanta esperança para a maioria da população. Ela sabe que o encanto da Grécia foi quebrado e agora é um país pobre, vivendo apenas da história. Alexandros Komanos, 26, um engenheiro mecânico, demitido há seis meses, disse aos repórteres do The Times que não tinha nenhum interesse em viver na "nova" Grécia e que gostaria de se juntar aos 200 mil gregos que deixaram o país desde o início da crise. Ele faz parte de uma geração perdida que, mesmo tendo estudado, não conseguiu se realizar profissionalmente e olha para o exterior como a última esperança de futuro.
"Não há sentido nenhum em ficar por aqui", disse Komanos, que está esperando antes de se mudar para a Holanda. "O governo está falando de números que melhoram, mas isso é tudo recuperação virtual. A economia real, pessoas reais, como eu, ainda estão sofrendo."
Ele estava completamente desiludido com a política grega, incluindo Syriza. "Tudo o que ouvi durante anos são os políticos nos enganarem com falsas promessas e sonhos. Tsipras está vendendo a mesma esperança. "
A reação do cidadão grego está em linha com o que as pesquisas apontam: há uma descrença generalizada das pessoas, pela incompetência dos governos em encontrar soluções que amenizem a crise. Enquanto a confiança nas empresas tem permanecido estável, a dos governos vem caindo ano a ano.
A exemplo do que aconteceu na Espanha, como confiar em governos que prometem solução e deixam o desemprego dos jovens chegar a níveis superiores a 50%? A Grécia acaba de fazer a opção que os espanhóis fizeram há dois anos: deram uma guinada no tipo de governo que queriam. A Espanha não conseguiu resolver em grande parte sua crise. Será que apenas a troca dos marinheiros na Grécia será suficiente para evitar que a nau continue afundando?
Tradução: Jessica Behrens. Redação e edição final: João José Forni.
Fotos: Capa: www.telegraph.co.uk; Classe média nas ruas de Atenas: James Glossop/The Times; Gráfico: www.thetimes.co.uk
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