Verdade em busca daO mundo atravessa um dos períodos mais conturbados de sua história. A maior crise em pelo menos 100 anos. Apenas para ficar no século XX até esse início de século, poucos acontecimentos históricos podem se comparar, em dimensão e consequências desastrosas, com a pandemia do Coronavírus.

Para ficar com os mais emblemáticos: as duas Guerras Mundiais de 1914-1918 e 1939-1945; a pandemia da chamada Gripe Espanhola, em 1918; a revolução soviética, em 1917; a quebra da Bolsa de Nova York e a crise financeira de 1929. Houve outras guerras? Sim. Outros acontecimentos graves, que impactaram a humanidade? Sim. Mas da forma como esta pandemia afeta todos os países de forma inapelável e deletéria, basta ficar nos eventos históricos que citamos.

A reboque da pandemia, está acontecendo um fenômeno que afeta a forma como percebemos e acompanhamos o que está acontecendo: a decadência da verdade. No Brasil, em especial, há uma verdadeira guerra de versões, em que, patrocinados até mesmo pelo governo e seus áulicos mais irresponsáveis, somos bombardeados todos os dias pelas chamadas “fake news”. Que nada mais são do que notícias ou versões falsas que acabam se travestindo de verdade pela boca de militantes, políticos ou técnicos inescrupulosos. Como temos um governo que governa pelo Twitter e pelo Facebook, essa redes se tornam reverberadoras de desinformação. A ponto de elas já terem retirado do ar posts mentirosos e alertado até o presidente da República sobre conteúdo suspeito. Lamentável constatar isso.

Por isso, convém repassar o que a organização Rand Corporation* publicou em janeiro último, quando produziu um excelente trabalho sobre essa praga que hoje parece contaminar todos os países, não importa se do Ocidente ou do Oriente. E nem a orientação política ou o nível de desenvolvimento desse país. O foco deles é os EUA, nesse momento conturbado de país com maior número de mortos pela pandemia, mudança de governo e de sérias ameaças à democracia.

“A linha entre fato e ficção na vida pública americana está ficando confusa. A RAND chama esse fenômeno de "Decadência da Verdade" e nossos pesquisadores estão estudando suas causas, consequências e como combatê-la.” Embora ela se refira aos Estados Unidos, podemos estender isso para o Brasil, que, aliás, tem um governo que durante a pandemia procurou imitar a orientação errada e negativista de Donald Trump, naquele país.

As causas

“A era atual de Decadência da Verdade nos Estados Unidos é definida em parte por uma crescente discordância sobre fatos objetivos que existem em escala não observada em períodos anteriores. Por exemplo, apesar de haver mais evidências do que nunca de que as vacinas são seguras e eficazes na prevenção de doenças, o ceticismo em relação à vacina está aumentando nos Estados Unidos.” Poderíamos repeter ipsis litteris essa afirmação em relação ao Brasil.

 “Este é apenas um exemplo de como as atitudes públicas podem divergir dos fatos e dados em debates e discursos. Então, o que está por trás do declínio? Os pesquisadores da RAND identificaram quatro fatores principais:

 1 - Preconceitos cognitivo;

 2 - Mudanças no ecossistema de informação, incluindo a ascensão das mídias sociais e mudanças na economia das notícias;

3 - Demandas sobre o sistema educacional que reduzem sua capacidade de se adaptar às mudanças no ecossistema de informação;

4 - Polarização política e social”.

Verdade em busca de 1As consequências

 “Sem um conjunto comum de fatos, será um desafio fazer progresso em qualquer uma das principais questões que o país enfrenta: COVID-19, saúde, imigração, mudança climática, pobreza e falta de moradia, e muitos outros. Os formuladores de políticas precisam compartilhar fatos e dados para debater prioridades e compensações e para tomar decisões políticas eficazes.”

Nosso comentário

No Brasil, enfrentamos hoje uma verdadeira batalha na comunicação, entre o fanatismo político-militante do governo Bolsonaro e seus seguidores e os cientistas, intelectuais e a mídia tradicional, principalmente, apenas para não generalizar as redes sociais, onde ocorre outra batalha sobre a verdade. É impressionante como isso, há mais de um ano, prejudicou o combate à pandemia do coronavírus, em ação materializada nas precoces demissões de dois ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. 

Continua o artigo da Rand Corporation:

“No nível individual, a diminuição do papel dos fatos pode corroer a confiança pública nas instituições, alimentar o aprofundamento da polarização política e de outros tipos, enfraquecer ou deslocar o discurso civil significativo, necessário para uma democracia saudável e contribuir para a alienação e o desligamento. Além disso, a rejeição de fatos pode ter consequências imediatas para os indivíduos. No caso do COVID-19, por exemplo, rejeitar fatos sobre a doença e como ela se espalha pode levar a complicações de saúde e até a morte.”

As soluções

.      “Combater a decadência da verdade exigirá um esforço multifacetado e interdisciplinar de organizações de pesquisa, formuladores de políticas, empresas de tecnologia, mídia, educadores e indivíduos. É essencial continuar a aprender mais sobre este vasto problema, mas os pesquisadores da RAND já identificaram alguns elementos importantes para encontrar soluções.

·      Intervenções educacionais, como a renovação da educação cívica nas escolas públicas dos EUA e o fornecimento de melhores ferramentas para apoiar a alfabetização midiática, serão importantes.

.      Reconstruir a confiança do público nas instituições também será essencial. Isso exigirá uma série de reformas, incluindo aquelas focadas na transparência governamental, inclusão e construção de experiências nacionais compartilhadas para revitalizar a infraestrutura cívica da América.

·      Também precisamos de mudanças na forma como a informação é disseminada, incluindo o jornalismo que desvende melhor o fato e a opinião e torne a comunicação científica mais acessível.

·      Finalmente, os pesquisadores estão discutindo sobre instrumentos e mecanismos de governança para lidar com a disseminação da desinformação online.

Este é apenas o começo. A RAND exorta indivíduos e organizações a se unirem a nós para restaurar o papel dos fatos, dados e análises na vida pública americana.”

Nosso comentário

Para ficar apenas na forma como a informação é compartilhada. Infelizmente, as redes sociais, que cumprem um papel importante para disseminar a informação de forma rápida, barata, acessível, devido à mobilidade dos aparelhos, estão sendo usadas para desinformar, espalhar “fake news” e até mesmo incitar a população a atos antidemocráticos. Sem o mínimo pudor.

Pessoas sem cultura midiática, algumas até semianalfabetas, recebem e compartilham vídeos, textos, podcasts, fotografias sem atentarem para o material tóxico que disseminam, muitos deles com conteúdos inverídicos, falsos, deturpados, até mesmo perigosos, como acontece agora durante a pandemia. Depoimentos criminosos sobre tratamento alternativo, remédios de eficácia não comprovada ou teses negacionistas, a respeito das vacinas, invadem as redes sociais. E não há qualquer tipo de repressão a essas atitudes.

Não bastasse isso, as redes sociais, pelo menos no Brasil e nos Estados Unidos, se transformaram numa arena de confronto de ideias radicais. Antes era no palanque. Em 2013, o debate, as brigas se davam nas passeatas. Nem é confronto de ideias, mas uma briga entre o time dos que apoiam as teses absurdas do governo e os que combatem essas ideias. A racionalidade não existe. O meio termo foi esquecido. E quem padece é a verdade.

Por que a verdade estaria em decadência também na mídia? Porque os filtros diminuíram, a pressão sobre o “furo” e a velocidade da informação que perece muito rapidamente faz com que até a mídia tradicional, que era mais cuidadosa, cometa pecados pela falta de mecanismos de checagem, antes da publicação; enxugamento dos quadros de profissionais e economia operacional. A mídia acaba sendo caudatária de uma pressão que não deveria existir. E ela algumas vezes cai nessa armadilha de publicar apressadamente versões que depois não se confirmam. A verdade, quando não há intenção de informar, mas de confundir, acaba sendo um ativo importante, aliado do time dos “quanto pior, melhor”. 

A decadência da verdade como um Sistema

Decadência da Verdade sistema fev 2021Modelo publicado no site rand.org

https://www.rand.org/research/projects/truth-decay/about-truth-decay.html

* A RAND Corporation é uma organização de pesquisa que desenvolve soluções para desafios de políticas públicas para ajudar a tornar as comunidades em todo o mundo mais seguras e protegidas, saudáveis e prósperas. A RAND é uma organização sem fins lucrativos, apartidária e comprometida com o interesse público.

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