As empresas aéreas brasileiras, com o respaldo da Agência Nacional de Aviação-Anac e o apoio dos sindicatos e associações patronais querem que o consumidor brasileiro pague pelos prejuízos acumulados ao longo dos últimos anos. Para isso, elas estão autorizadas a cobrar por mala despachada, a partir do dia 14 de março. Sob o argumento falacioso de que esse aumento poderá ensejar redução da tarifa, a decisão está sendo contestada e questionada por várias entidades, por ferir o Código de Defesa do Consumidor.
O prejuízo das aéreas se deve a vários fatores, como a instabilidade do câmbio no Brasil, já que grande parte dos custos das empresas é em dólar; à queda da demanda, em função da crise econômica; e, principalmente, a problemas de gestão, uma vez que as principais empresas brasileiras gozam de privilégios inexistentes em outros países e mesmo assim registram prejuízo. Nem as incorporações e fechamento de pequenas empresas aéreas, nos últimos anos, conseguiu melhorar os resultados.
Em 2015, as empresas aéreas no Brasil tiveram um prejuízo recorde de R$ 5,9 bilhões. Foi aquele o 5º ano seguido de resultados negativos. “É a crônica de uma crise anunciada. Estamos em um ambiente recessivo e os entraves regulatórios do Brasil, que tornam a nossa aviação mais cara do que os padrões internacionais, persistem”, afirmou o presidente da Associação Brasileira de Empresas Aéreas (Abear), Eduardo Sanovicz, na ocasião.
Ressalte-se que no mundo todo o negócio da aviação vive uma crise grave. Várias empresas se juntaram nos últimos anos, por meio de fusões ou incorporações, para sobreviver à retração no mercado e ao impacto da crise econômica de 2008 nos Estados Unidos e na Europa, principalmente. A complexidade do negócio da aviação com demanda crescente e exigências cada vez maiores dos consumidores, além da instabilidade de moedas e economias nos países desenvolvidos, pressionam essa indústria, que vive uma permanente crise. Poucas empresas aéreas no mundo são lucrativas e estáveis.
O argumento das empresas e da Anac para cobrança por mala despachada no Brasil não tem sustentação. Dizem os representantes das empresas aéreas ser uma prática utilizada no exterior e uma tendência do mercado. E que o custo da tarifa, ao não separar o despacho da mala, acaba encobrindo um custo assumido pelas empresas. É uma meia verdade. Apenas as empresas chamadas “low cost, low fare” no exterior cobram por malas despachadas. Mas com critérios diferentes do que está sendo anunciado no Brasil. Quando se fala em “low cost” (custo baixo) significa realmente passagens com preços menores do que nos demais meios de transporte.
Aqui, como existe na prática um oligopólio em que duas empresas dominam cerca de 80% do mercado, resistindo sempre contra a entrada de empresas estrangeiras, o que vai acontecer é o contrário do que a Anac prevê. Ao embutir a cobrança da mala, haverá na prática aumento real no preço das viagens aéreas, que já estão num patamar proibitivo para o passageiro da classe média. Mesmo que o viajante aproveite alguma promoção pagando R$ 200 ou R$ 300 por uma passagem, o preço da mala despachada (65% dos viajantes no Brasil viajam com uma mala despachada, diz pesquisa) representaria de 17 a 25% do preço da passagem. Para a Associação Nacional do Ministério Público do Consumidor (MPCON), o argumento de que haverá uma queda no preço das passagens é uma “falácia” e “não foi demonstrado”.
Modelo europeu seria o exemplo
Na Europa existem várias empresas que cobram pela mala despachada. Em compensação, vendem passagens muito baratas. Valor até mesmo mais baixo do que em trens ou ônibus. Um exemplo é a britânica EasyJet, das primeiras a utilizar o conceito “low cost” na Europa. É a companhia aérea líder no Continente. Atualmente voa para mais de 137 destinos em 34 países, com mais de 200 aviões. Ela cobra 34 libras (R$ 130,00) por uma mala de 20kg.
Apenas a título de comparação, uma passagem convencional num trecho semelhante a Brasília-Rio de Janeiro, na Europa, custa pelo menos 200 libras (R$ 760,00), com direito a bagagem de mão e uma mala despachada de 20 kg. Na empresa “low cost”, pode-se comprar essa passagem a partir de 45 libras (R$ 170,00), dependendo do horário. Com a opção de pagar antecipadamente o preço da mala despachada. Acaba sendo uma ótima opção para viagens rápidas, a partir de aeroportos centrais. Por isso mesmo, essas empresas se tornaram as mais lucrativas.
O Brasil não consegue avançar
Aqui no Brasil anúncios de redução de preços, facilidades para o consumidor ou descontos ficam sempre na promessa. A expectativa da Anac é que, com a regulamentação, haja uma queda das tarifas praticadas pelas aéreas. O que tem acontecido nos últimos anos no transporte aéreo brasileiro é piora do serviço, do conforto e da qualidade dos lanches, com elevação dos preços na outra ponta. O que mais impressiona é a dificuldade de obter tarifas melhores entre as três concorrentes. A impressão é que uma empresa vigia o preço da outra para elevar a tarifa. Não há diferença substancial entre elas. O que evidencia quase uma cartelização do transporte aéreo, num desrespeito claro ao consumidor.
Um exemplo de ônus ao passageiro, que não redundou em redução de preço de tarifa, foi a cobrança de lanche pela empresa Gol, em algumas rotas. Os preços das passagens dessa empresa quase sempre equivalem aos das demais empresas, com a diferença de que o passageiro da Gol tem direito somente a um copo de água.
As empresas aéreas estrangeiras estão proibidas de fazer “cabotagem” no Brasil. Ou seja, não podem pegar passageiros de um aeroporto para outro dentro do país. Um avião da TAP, por exemplo, pode sair com vários lugares vagos de S. Paulo para Lisboa, com escala no Rio, mas não pode levar passageiros de S. Paulo para o Rio. O que é um absurdo. A legislação brasileira, ao manter essa reserva de mercado para empresas brasileiras, acaba inibindo uma competição que seria benéfica para o mercado.
O que vai acontecer
A cobrança por mala despachada vai onerar ainda mais o passageiro e as empresas que trabalham com constantes deslocamentos de empregados. As aéreas, ao contrário do que diz o Sindicato que as representa e a Anac, não deram nenhum sinal efetivo de redução de tarifas. O presidente da Gol disse que não é possível garantir uma queda nos preços porque eles são “dinâmicos” e dependem de outras variáveis, como demanda e câmbio. Entendeu?
A primeira a anunciar a tabela de preços foi a Latam: R$ 50,00 por mala de até 23 kg. R$ 80,00 pela segunda mala e R$ 120,00 por mala acima de 23 kg. A empresa já anunciou que o impacto nas tarifas poderá ocorrer lá por 2020. Ou seja, não vai ocorrer. Além disso, ao contrário do que acontece na Europa e nos Estados Unidos, a bagagem de mão no Brasil passa de 5 kg (franquia, aliás, ridícula, porque algumas malinhas de mão pesam 5 kg vazias), para 10 kg.
As demais empresas prometem tarifa reduzida para quem não despachar bagagem, mas não se sabe quanto. E a média de preço para uma mala de 23 Kg seria de R$ 30. A Avianca não anunciou ainda como aplicará a decisão.
No exterior, a maioria das empresas libera o peso da bagagem de mão, limitando apenas o tamanho. Se o passageiro quiser carregar 20 kg na bagagem de mão, o problema é dele. Desde que a malinha tenha as medidas determinadas. No Brasil, se mantida a decisão, o que vai ocorrer é uma caça a bagagens de mão, para ver se ultrapassam os 10 kg.
A medida é criticada por órgãos de defesa do consumidor, pela OAB, por considerá-la afronta ao Código de Defesa do Consumidor; e pelo Ministério Público, que entrou com ação, contestando a cobrança. “Entendemos que isso estabelece a possibilidade de aumento dos casos de abusos de preços nas passagens aéreas. Esperar que acreditemos em bom senso é muito. Nossas companhias não são conhecidas por praticarem preços amigáveis”, argumentou José Augusto Peres, diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).
A mudança nas regras só vem contra o consumidor. Pela medida aprovada, só será considerado extravio de bagagem quando a mala não for localizada. Se a mala não chegar com o passageiro, mas for achada, as companhias não terão de indenizar o usuário.
“É absurdo. Imagine o passageiro que chegue sem as malas. Terá de gastar do próprio bolso, sem saber se e quando sua mala chegará. Caso ela apareça após 20 dias, a companhia aérea não lhe deverá nada. Nem mesmo um pedido de desculpas”, argumenta Peres. O prazo para a companhia identificar o paradeiro da mala cai de 30 para sete dias (voos domésticos) e 21 dias (internacionais). Belo consolo.
O argumento da Anac de que “as novas regras aproximam o Brasil do que é praticado na maior parte do mundo e contribuem para ampliar o acesso ao transporte aéreo e diversificar os serviços ao consumidor, gerando incentivos para maior concorrência e menores preços” é inconsistente. No exterior, a cobrança por mala despachada está restrita ao segmento de empresas regionais, com passagens muito baratas. E o passageiro tem isso bem claro na hora de comprar, porque sabe que está pagando um preço muito mais reduzido para voos de curta duração e sem malas no porão. No Brasil, ao contrário, a cultura é outra; em vez de ampliar o acesso ao transporte aéreo, vai afastar os consumidores. A partir de 2015, com o recrudescimento da crise econômica, as pessoas fugiram dos aviões. O que acabou agravando a crise das aéreas, que cortaram voos e pessoal.
Reação contrária
O MP em São Paulo entrou com uma ação civil pública na Justiça pedindo que seja anulada liminarmente a regra da Anac que autoriza as aéreas a cobrarem taxas para despacho de bagagens. A cobrança fere os direitos do consumidor, segundo o MP. Para o MPF, a mudança foi feita “sem analisar a estrutura do mercado brasileiro nem avaliar o impacto da medida sobre os passageiros com menor poder aquisitivo”.
E continua a Nota do MP: “Ao apostar na concorrência como fator de ajuste dos preços, a agência reguladora ignorou o fato de o Brasil dispor de um número restrito de empresas, o que torna o setor pouco competitivo, sem grande disputa por tarifas mais baixas”. Em resumo: volta a tornar o transporte aéreo um privilégio de uma minoria, como no passado.
Além dos órgãos de defesa do consumidor, O Senado aprovou em dezembro de 2016 projeto de decreto legislativo para barrar a decisão da Anac de autorizar as empresas aéreas a cobrarem pelo despacho de bagagens em voos nacionais e internacionais. O projeto seguiu para Câmara dos Deputados, onde ainda não foi analisado.
O que deixa os consumidores e órgãos de fiscalização surpresos é o papel da Anac nessa decisão, ao ceder à pressão, por mais arrecadação, do regulado. Para Omar Daniel, ex-gerente de operações da Infraero, “um dos deveres do Estado seria a busca de um equilíbrio de forças entre consumidores e empresas. E a ANAC está apoiando claramente uma das partes interessadas, as empresas aéreas.”
O argumento de que a medida irá possibilitar uma possível redução da tarifa também não é aceito pelos especialistas do setor. Não existe nenhum compromisso para que isso ocorra. “Por que a ANAC não estabelece uma redução imediata e um aumento controlado. Também deveria estabelecer limites quanto às variações absurdas de preços para quem compra antecipado e aqueles que adquirem os bilhetes em cima da hora,” diz o ex-gerente. Não bastasse isso, a penalização para uma simples troca de horário da passagem, por exemplo, é no Brasil um outro ônus pesado para o consumidor. O passageiro, no Brasil, quando negocia com empresas aéreas, tem a impressão de ser um estorvo e de que elas estariam sempre fazendo um favor em deixá-lo voar, despachar a bagagem, fornecer-lhe um lanche e até dar uma informação. Essa sensação é mais evidente, quando o passageiro estiver vulnerável, precisando de alguma exceção na rotina do voo. É uma relação de negócio extremamente conturbada.
“É a história que se repete: agências reguladoras que deveriam zelar pelo interesse do cidadão estão claramente atuando na defesa do que desejam as empresas, numa absurda inversão de valores. O parecer escancara isso de forma detalhada e demonstra que o resultado dessa resolução será uma relação desigual entre passageiros e empresas na contramão do que estabelece a própria Constituição”, disse o presidente nacional da OAB, Claudio Lamachia.
A forma apressada como ocorreu essa decisão demonstra, mais uma vez, que as agências reguladoras não estão cumprindo com o seu papel. Ao analisar o interesse apenas de um lado da questão, as agências abrem mão do papel de ser um órgão regulador.
O consumidor brasileiro será o mais prejudicado com a medida. Como a relação de consumo com as aéreas sempre foi difícil e pouco amigável - basta ver quando ocorrem atrasos, acidentes, cancelamentos, extravios, como tudo se transforma em crise - os passageiros já entenderam que essa medida pode ser muito boa para as companhias aéreas, sobrando a conta para quem já está sobrecarregado com a maior carga tributária do mundo. Sob o argumento de equiparar o mercado brasileiro ao de outros países, nós, mais uma vez, vamos pagar a conta.
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