O Flamengo não perdeu apenas no campo, dia 13, quando o Independiente da Argentina se sagrou campeão da Copa Sul-Americana. O Clube também perdeu no quesito organização e reputação. Pelo triste espetáculo apresentado pela sua torcida, ao vivo pela televisão, transformando o Maracanã e arredores em praça de guerra. O lamentável episódio é o resultado de uma série de erros. Quando eles se acumulam, temos uma crise, como aconteceu.
Se o Flamengo e a Polícia Militar não tinham condições de garantir a segurança dos torcedores, a triagem na entrada, a integridade física das torcidas visitantes (no caso, os argentinos) e a segurança de quem transitava pelos arredores, o Clube deveria ter avaliado melhor e talvez reduzido a quantidade de ingressos vendidos. Ou aumentado o preço do ingresso. Esta, medida antipática, mas melhor do que deixar ocorrer uma grave ameaça à vida e à segurança das pessoas. A multidão não pode ser "desculpa" para o que ocorreu. Por que em eventos com até um milhão ou dois milhões de pessoas (como no Círio de Nazaré, em Belém) fatos como aqueles não acontecem? Até porque não é a primeira vez que assistimos a cenas lamentáveis como essa, principalmente, no Rio de Janeiro e em S. Paulo, em jogos de futebol.
O Flamengo como mandante do jogo, naturalmente com o apoio da Polícia e de seguranças privados, é o responsável pela segurança dos torcedores e familiares. A Polícia, pelas pessoas que transitam pelas ruas adjacentes ao Maracanã, que também foram vítimas dos vândalos vestidos com a camisa do Clube.
Sob qualquer ângulo que analisemos, não há como a imagem do Clube deixar de sair arranhada, pela transmissão das cenas para todo o Brasil e exterior, até pelo fato de se tratar de uma decisão internacional, com repercussões principalmente na América do Sul. Ninguém lembrará de falhas da Polícia Militar ou do governo do Rio, cada vez mais ausente dos problemas da sociedade e preocupado em tapar os rombos deixados pela quadrilha de Sérgio Cabral. Lembrará, isto sim, da camisa do Flamengo. As cenas mostradas pela televisão atentam contra a imagem do País, do futebol.
Não é comigo
A Nota divulgada pelo Flamengo de certo modo tenta atribuir o tumulto a uma “fatalidade” ou a cenários conhecidos, mas impossíveis de contornar. Como se na realização de um jogo desse porte, com tanta gente, fosse natural o tumulto, a invasão, a barbárie, os assaltos e ataques físicos, como aconteceu contra o motorista que, provavelmente sem querer, atropelou um torcedor. Ou a vendedores de bebidas, na entrada do estádio. Não.
Os erros da Polícia e dos seguranças contratados para evitar a invasão do estádio, ou ataques e saques a torcedores dentro e fora do estádio, além da depredação do Maracanã e uso de objetos proibidos em jogos de futebol, nada justifica o Clube dizer “Tudo isso faz com que o controle de público em jogos de futebol seja muito mais complexo." Sabemos que um dos problemas, apontados pela polícia para a dificuldade de identificar quem tinha ingresso e quem não tinha, evitando que os não portadores se aproximassem do Maracanã, foi o Flamengo facultar a entrada pela simples apresentação do cartão de sócio-torcedor. Com R$ 10,00 qualquer pessoa pode se tornar sócio torcedor. Ao apresentarem o cartão de sócio à polícia, na triagem, esta não tinha como saber se ali estava incluído um ingresso ou não. Então, cerca de oito mil pessoas se aproveitaram e invadiram o Maracanã. Uma verdadeira horda sem comando.
Todos sabem que o controle de qualquer multidão é muito complexo. Para isso deveria ter havido cuidadoso planejamento, ampla discussão com o policiamento para prevenir e reprimir, se fosse o caso. Treinamento intenso para os seguranças. Ou o Flamengo achava que numa decisão o público seria aquele das noites do Campeonato Brasileiro, com 5 ou 6 mil torcedores? Ao vender os ingressos, esgotados dias antes, a organização e a polícia deveriam prever o que os esperava. A impressão é que tanto o Flamengo, quanto a Polícia, tentaram justificar o tumulto como algo natural, inevitável quando se reúne muita gente. Esse, um entendimento totalmente equivocado.
“Cabe reflexão mais ampla e profunda sobre os fatos por parte da sociedade”, diz o Flamengo na Nota, distribuída com certo atraso para a imprensa. A sociedade é apenas vítima desses erros. Cabe até fazer uma reflexão sobre o que levaria alguém a planejar pelas redes sociais uma invasão ao estádio, derrubando grades, avançando como uma turba, pisoteando pessoas, assaltando, tudo isso para tentar ver apenas uma parte do jogo. Vamos falar a verdade. O jogo é o que menos importa nessa operação. Trata-se de marginais, pouco interessados no jogo. Valem-se da ocasião para cometer delitos, assaltar e extravasar frustrações pessoais ou até mesmo uma resposta canhestra e inoportuna ao descalabro econômico e político herdado pelo Rio de Janeiro de políticos e burocratas que estão presos.
Se o Flamengo sabia (e as redes sociais anunciaram a invasão) que havia esse risco, por que não tomou providências mais rigorosas, primeiro na venda de ingressos, depois na identificação ou triagem dos torcedores? Por que a polícia não agiu preventivamente? O problema dos cartões de ingresso não ficou bem explicado. E, por isso, essa foi uma das causas do tumulto.
Insinuar que “o fenômeno das torcidas organizadas” hoje se associa à “invasão, vandalismo e violência” também foi inapropriado na nota do Clube, até porque quem deve controlar as torcidas organizadas (quase sempre protegidas pelas diretorias) é o próprio Clube e não a polícia. Aliás, as torcidas organizadas não apenas no Rio mas em várias capitais do País estão quase sempre por trás de ataques a ônibus, assassinatos e tumultos nos estádios. E, embora muitos sócios tenham extrema dificuldade em comprar ingressos para esses jogos decisivos, as "torcidas organizadas" os recebem de graça. Para fazer baderna.
Por que em outros estádios do país, como recentemente aconteceu no Mineirão, na decisão da Copa do Brasil; e na Arena do Grêmio, com a Libertadores, esses fatos não aconteceram? O número de torcedores foi mais ou menos equivalente.
Os erros da polícia que ocorreram (e ela reconheceu isso) não justificam tudo que aconteceu. Era previsível que, se o Flamengo perdesse, os ânimos iriam estar alterados. Que sirva de reflexão para outros eventos desse porte. Com multidões, nada pode ser improvisado. Tudo deve ser muito planejado e organizado.
Precedente perigoso
Não é de hoje que ao redor dos estádios circula uma verdadeira horda de vândalos. Episódios anteriores, ocorridos em Recife, no estádio do Arruda, em 2014, e num jogo da final do Campeonato Brasileiro, em Brasília, em 2008, quando o S. Paulo se sagrou campeão, não deveriam acontecer. No caso do S. Paulo, um torcedor morreu após um tiro “acidental” de um soldado atingir sua cabeça. No Recife, o torcedor morreu atingido por um vaso sanitário jogado de uma arquibancada superior, por torcedores do rival. Em fevereiro deste ano, um torcedor do Botafogo foi morto e oito ficaram feridos antes do jogo com o Flamengo no Engenhão, Rio de Janeiro, vítimas de um tiroteio. E em S. Paulo, não foi uma única vez que torcedor morre em brigas de torcidas. Para o Flamengo agora, só faltou um cadáver para agravar essa crise.
É urgente o Clube rever toda sua política de venda de ingressos no Maracanã, relação com os sócios e treinamento dos seguranças, inclusive num acordo com a Polícia Militar do Rio de Janeiro. Convenhamos, a segurança dos jogos não compete unicamente às equipes mandantes. Mas, certamente, quem está juntando os cacos de toda a baderna do Maracanã, sozinho, é o Flamengo. Só falta agora o Clube ficar impune depois desse mau exemplo de organização.
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