Porto exportaçãoSe um habitante de outro planeta pousasse no Brasil nas últimas semanas, dificilmente ele permaneceria por aqui. O Brasil tem assistido em menos de um mês eventos de extrema gravidade que se enquadram naquilo que o filósofo e sociólogo Zygmunt Bauman chamou de “estado de crise”. Se não, vejamos. O Brasil amanheceu neste 6 de agosto na antessala de uma grave crise econômica: o tarifaço de Trump. Uma crise que nasceu com viés político. Independentemente das causas bizarras que o controverso presidente americano alegou na famosa “carta”, enviada ao governo brasileiro, o fato é que os Estados Unidos fixou uma taxa de 50% para grande parte dos produtos exportados pelo Brasil para aquele país. Faz um mês pelo menos, desde que esse imbróglio começou, que não se fala em outra coisa nos gabinetes dos ministérios econômicos de Brasília. O que significa isso?

O prejuízo à economia brasileira, principalmente aos exportadores é tão ameaçador que ainda não se calculou a dimensão precisa do que o tarifaço irá representar para o país, para as empresas exportadoras e, por extensão, para a economia de modo geral. Como também para milhares de fornecedores e trabalhadores, do Nordeste ao Sul do Brasil. Como consequência imediata, muitos empregos estarão na berlinda. Não houvesse outras crises, neste momento, somente este fato seria o bastante para tirar o sono das autoridades do governo e dos empresários. Estes precisarão refazer todo o planejamento econômico e financeiro, num cenário bastante incerto. Já existem até cálculos preliminares: se não houver um acordo para reduzir as tarifas fixadas pelos EUA para os produtos taxados em até 50%, o desemprego poderá atingir mais de 100 mil trabalhadores, de imediato. Principalmente no setores de carnes, móveis, frutas, calçados e café. Pesquisa também constatou que o desemprego causado pelo tarifaço é a maior preocupação do brasileiro.

O mundo em estado de crise

Em setembro de 2016, quando o país enfrentava uma crise política grave, publicamos um artigo sob o título "Por que o mundo vive em estado de crise”. O cenário de nove anos atrás no Brasil aparenta não ter mudado muito, porque, salvo alguns momentos de euforia com a economia, com a redução do desemprego e a queda no número de brasileiros que passavam fome, antes, em 2020, o Brasil, como todo o mundo, sofreu as consequências deletérias da pandemia do coronavírus. Foi como uma parada no tempo, porque as atividades produtivas foram interrompidas e muitos empregos sumiram ou ficaram na corda bamba. O Brasil foi um dos países mais afetados pelos efeitos do vírus, não apenas pelo número de infectados e de mortes, mas também pelo impacto na economia.

Alguns argumentos daquele artigo ainda estão muito atuais. Há uma sensação de que desde a década passada, o mundo vive numa instabilidade constante, parecendo estar condenado a viver em crise permanente. Mais do que um "estado de crise", o que parece ocorrer hoje é o divórcio entre poder e política, abalando as instituições e levando o Estado a perder a capacidade de responder às demandas da população. Há um inconformismo generalizado. Para os estudiosos, "sinal de mudança profunda que envolve o sistema social e econômico e que terá efeitos de longa duração". A inquietação não atinge apenas os países em desenvolvimento, isso inclui também a América do Norte e a Europa.

O artigo também relatava, que vivíamos um momento de grande instabilidade nas relações internacionais, mas que iam além de movimentos sociais de contestação ou guerras, muitas sustentadas por ativismo religioso, interesses econômicos ou disputas políticas e ideológicas, até mesmo históricas, como agora ocorre nos conflitos Rússia-Ucrânia e Israel-Hamas. A crise enfrentada pelas sociedades ocidentais decorre de uma série de transformações mais profundas sobre as quais cientistas sociais têm se debruçado para tentar entender e, pelo menos, tentar apontar caminhos.

Naquele ano, foi publicado o livro “Estado de Crise”* de autoria de ninguém menos do que Zygmunt Bauman, um dos maiores pensadores da modernidade, dos últimos anos; filósofo polonês que vivia em Londres e autor de diversos livros impactantes; e por Carlo Bordoni, sociólogo, jornalista e escritor italiano, também com diversos livros publicados. Bauman morreu em 2017, mas parece que ele previu que a ‘doença’ que atingira o mundo dificilmente seria sanada. “O divórcio entre poder e política produz um tipo novo de paralisia. Ele abala as instituições políticas necessárias para resolver a crise e mina a crença dos cidadãos de que os governos possam cumprir suas promessas. Portanto, o que está em curso é uma crise da democracia representativa e também da soberania do Estado”, diziam os autores na apresentação do livro. E pior, não havia na época, e nem hoje, um estadista, um profeta, um líder que assumisse o comando dessa crise.

O que estamos assistindo nestes primeiro sete meses de 2025 parece ser o ápice daquilo que Bauman e Bordoni anteviam no provocante livro. Mas a leitura não dava todas as respostas; os dois autores nos deixavam ainda com mais dúvidas, porque a intenção, provavelmente, era provocar a polêmica que até hoje continua longe de ter uma solução. Até mesmo porque nem eles ousavam apostar num futuro melhor. Bauman, pelo menos, não precisou testemunhar as recentes bizarrices comandadas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que têm provocado uma inquietação geral na economia mundial. Sem falar na política interna dos EUA, de viés persecutório a imigrantes e opositores, algo inédito na história americana desde a época do macartismo ou Era McCarthy, durante a guerra fria (anos 1940 e 1950).

Um momento de transição

crise farol luz no fim do tunel mar revoltoVoltando ao “Estado de Crise”, para o sociólogo Carlo Bordoni “uma característica desta crise é sua duração. (...) Agora, as crises – tão vagas e generalizadas por envolverem uma parte tão grande do planeta – levam muito tempo para reverter a direção. Elas progridem muito lentamente, em contraste com a velocidade na qual todas as demais atividades humanas na realidade contemporânea de fato se movem. Todo e qualquer prognóstico de solução é continuamente atualizado e, em seguida, adiado para outra data. Parece que nunca vai acabar”.

Impressionante como todas as nuances suscitadas pelos autores parecem atuais, como se o mundo não tivesse encontrado o caminho até agora. Se não estava bem antes de Donald Trump assumir o governo americano, a impressão geral é que ficou muito pior. As promessas dele de acabar a guerra Rússia-Ucrânia, com uma bala de prata, até agora não surtiram efeito. Há pelo mundo um desencanto com a possibilidade de se chegar a bom termo para cuidar mais das pessoas do que dos drones e mísseis para se defender. Os EUA comandam uma era de negacionismo das mudanças climáticas, dos direitos das minorias e dos imigrantes. Os comandos que saem da Casa Branca chegam em alguns momentos a evocar as cenas chocantes e distópicas da famosa série do streaming The Handmade’s Tale. (1)

O Brasil nove anos depois

No Brasil, parece que vivemos hoje um flash back da década passada, quando o país passou por uma grave crise econômica e política, resultando num processo de ‘impeachment’ desgastante, que até hoje continua rendendo questionamentos. O Brasil pós pandemia estava se preparando para consertar um dos grandes problemas que se arrastarem nos anos 2020, como o fraco crescimento econômico, os juros altos, além do desemprego e do endividamento da população, que afetou grande parte dos consumidores de renda mais baixa até pelo menos 2023.

Passada a pandemia, estava aberta uma ampla janela para o país deslanchar, num contexto em que muitos países do porte do Brasil não estavam indo tão bem. Hoje, o que se nota é um governo perdido, no meio do tiroteio de Donald Trump, refratário a negociar diretamente com o “imperador americano, com receio de ele, na sua megalomania, tentar humilhar o interlocutor. E também a preocupação e expectativa dos empresários de que o governo comande ações para pelo menos tentar reduzir o prejuízo do tarifaço para além dos produtos já contemplados. Alguém poderia perguntar, mas qual a contribuição do Congresso brasileiro para ajudar o governo a achar uma saída para este momento de crise?

Quanto à participação do Congresso, certamente teria surpreendido os ETs, que chegassem ao Brasil, com boa parte dos parlamentares mais preocupados com a anistia aos invasores dos prédios dos Três Poderes, que participaram de uma “tentativa de golpe”, segundo a PGR e o STF. Do Congresso, não se ouviu sequer uma ideia ou qualquer ajuda para o Brasil sair do estado de crise, que viesse contribuir para o país encontrar uma saída para o recente impasse político e econômico. Enquanto os empresários perdiam o sono sobre o que fazer a partir do dia 6, com os produtos que estavam sendo produzidos durante a noite, com destino aos Estados Unidos, boa parte dos deputados estava ocupando as cadeis da direção da Câmara, para pressionar a presidência a pautar a anistia para os acusados pelos atos de 8 de janeiro e para acelerar os projetos que proíbam investigações contra deputados e senadores. Esse, o triste retrato do Brasil, em estado de crise.

Resultado: a mais recente pesquisa do Datafolha mostrou sinais de pessimismo e mau humor dos brasileiros, ao menos em relação aos Três Poderes instalados em Brasília. Tanto o Executivo, quanto o Legislativo e o Judiciário variam, na pesquisa, de ruim a péssimo. Para 78% dos entrevistados, deputados e senadores colocam seus interesses à frente dos da população. E 40% reprovam o Executivo. Quando se fala em crise, não se pode esquecer que ela tem uma relação direta com a reputação. E esta é construída com base em percepções. Para os brasileiros, nessa crise, nenhum dos poderes da República escapou de ser de alguma forma responsável. Como disse Zygmunt Bauman, numa entrevista à Globo News, “a crise é um momento de decidir que procedimento adotar, mas o arsenal de experiências humanas parece não ter nenhuma estratégia confiável para se escolher.”

Da releitura de "Estado de Crise", saímos também bastante céticos quanto à capacidade de os líderes atuais encontrarem uma saída para a crise que atinge o mundo capitalista e as regiões conflagradas, como o Leste europeu e o Oriente Médio, não importa o regime político ou a região em que estejam. Os autores já advertiam, lá em 2014**, que a crise na qual estamos mergulhados não era passageira. “Ela veio para ficar”.

*Estado de Crise. Bauman, Zygmunt; Bordoni, Carlo. Estado de Crise. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
** Sate of Crisis. Cambridge, Inglaterra. Polity Press: 2014.
(1) A série "The Handmaid's Tale" retrata um futuro distópico onde parte dos Estados Unidos teriam se tornado a República de Gilead, um regime totalitário teocrático. Pode ser vista no Prime Video e Paramount.

 

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