Luis Fernando VerissimoHayton Rocha*

O noticiário estampou em letras frias: Luis Fernando Verissimo, 88 anos, o maior cronista brasileiro vivo — e talvez também o maior entre os mortos, ouso dizer — estava internado no Centro de Terapia Intensiva do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre. O boletim médico foi curto: “estado grave, recebendo todas as medidas de suporte necessárias”. Em outras palavras: a medicina joga tudo o que sabe contra o tempo, mas o tempo não costuma perder tempo.

É o tipo de notícia que azeda o dia, dessas que marejam os olhos por três segundos. E se o silêncio vencer de vez a voz daquele que me ensinou que escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo? O cara que fez do adjetivo uma piada, do ponto-e-vírgula uma irreverência, da crônica um sopro de humanidade? Dói imaginar o cronista reduzido a poucas palavras em inglês, quando o português inteiro lhe deve reverência de joelhos.

Sempre admirei a coragem dele em rir do mundo como quem sopra fumaça de charuto no rosto de uma “otoridade constituída”. Millôr Fernandes dizia que “o humor é a mais séria das atitudes humanas”. Verissimo confirmou isso em cada texto: desmontava pompas infladas, transformava o óbvio em gargalhada ou sorriso comedido. Escrevia como quem toca jazz: algumas notas bastavam, o resto era improviso cúmplice do leitor.

A vida, no entanto, resolveu desafinar. Desde 2020, quando encarou um câncer na mandíbula, coleciona sequelas como troféus indesejados: AVC, coração falindo, Parkinson rondando. Parece tragédia, mas contada por ele seria cômica: “passamos a vida inteira nos preparando para a nossa morte e quando ela vem não podemos assistir”.

O Brasil lê melhor porque Verissimo escreveu. Num país que prefere rolar a telinha do celular a folhear um livro, ele mostrou que crônica não precisa ser sermão nem tratado. “O importante é comunicar”, repetia. E comunicava — até quando parecia não dizer nada de novo: “Ninguém é o que pensa que é, muito menos o que diz que é. Precisamos da complicação para nos definir. Ou seja: ninguém é nada sozinho, somos o nosso comportamento com o outro”.

Eu, cronista de série “B”, sempre tive nele uma bússola. Quis imitá-lo, fracassei quase sempre, mas fracassar tentando já é um privilégio. Minha ousadia foi beber em algumas das mesmas fontes: Clarice, Drummond, Hemingway… e Millôr, soprando no ouvido que o humor salva vidas — ou pelo menos torna suportável perdê-las.

Verissimo também teve um professor improvável: Pelé. O rei ensinou que cada jogada só faz sentido se mirar no gol. Escrever, para ele, era isso: driblar só o necessário e chutar seco, no canto. Se no caminho saísse algo arrebatador, tudo bem — mas que parecesse simples. É lição implacável para nós, escribas que insistimos em firulas quando basta um bico, rasteiro.

Há um pecado que ele nunca perdoava: a redundância. Repetir-se é confessar preguiça. Ironia das ironias: neste momento em que escrevo, repito o que milhares dizem — que o país ficará órfão quando a tinta de Verissimo secar. Mas é redundância inevitável: de que outra forma dizer?

Você lembra do pai dele, Érico, a quem devemos O tempo e o vento? Pois agora é o tempo que sopra contra o filho. É o vento que ameaça apagar a chama. Mas para nós, leitores, não haverá epitáfio. Depois de mais de 80 livros e incontáveis personagens, ainda falta a última crônica: a de se despedir rindo da própria despedida.

Talvez essa seja sua maior lição: toda vida é obra inacabada. O cronista não escreve para concluir, mas para deixar arestas soltas, como quem acena da janela e some na esquina. E se a morte resolver levar Verissimo, que ao menos tenha a decência de rir com ele — porque nós, certamente, choraremos sorrindo.

Eu nunca consegui praticar tudo que ele pregava. Mas tentei. E hoje, diante do silêncio, resta-me um desejo infantil: o gol que falta. Que ele acorde, pegue o lápis e rabisque mais uma daquelas frases que parecem simples, mas carregam o peso de uma vida inteira. Se não for possível, que ao menos saiba — de algum jeito — que seguimos tentando escrever claro. Certo, já é pedir demais.

Tentar, eu tentei. Torcer, mestre, eu torci, mas não deu. Se bem que, como você pontuou outro dia, a gente só sabe até onde pode ir quando já foi.

* Hayton Rocha

Criador e editor do Blog do Hayton, nasceu em Itabaiana (PB). Pós-graduado em Marketing, construiu uma carreira de mais de 40 anos no Banco do Brasil, onde se aposentou como Diretor de Marketing e Comunicação. Atualmente divide a vida entre Maceió (AL) e Brasília (DF). É autor de Só eu sei – crônicas (2019), Vai que dá certo ano que vem (2020), O benefício da dúvida e outros casos (2021), Frestas (2022), Uma estrada e a lua branca (2023) e Até aqui deu certo (2024).

Luis Fernando Verissimo (1936-2025), gaúcho de Porto Alegre, foi um prolífico escritor, jornalista, cartunista e músico brasileiro, filho do renomado autor Érico Verissimo. Conhecido por seu humor, ironia e crítica social, produziu mais de 80 obras, incluindo os best-sellers "Comédias da Vida Privada" e "O Analista de Bagé". Verissimo também foi roteirista de TV, tradutor e músico, tocando saxofone na banda Jazz 6. Seus primeiros anos de estudo se realizaram nos Estados Unidos, onde o pai trabalhou como professor na Universidade da Califórnia, de 1943 a 1945. Então, já no Brasil, estudou no Instituto Porto Alegre. Aos 16 anos de idade retornou aos EUA, onde estudou na Roosevelt High School, em Washington, e regressou ao Brasil em 1956. Trabalhou no Rio de Janeiro e em 1967, de volta a Porto Alegre, trabalhou no jornal Zero Hora e na MPM Propaganda. Nos anos 1970, escreveu para os jornais Folha da Manhã e Jornal do Brasil.  Nos anos 1980, viveu novamente nos Estados Unidos. O autor também escreveu para a revista Veja, O Estado de S. Paulo e foi colunista do jornal O Globo. Na tevê Globo, foi redator de programas como Planeta dos homens e Viva o gordo. Em 1997, recebeu o troféu Juca Pato, na categoria Intelectual do Ano. Nos EUA, se apaixonou pelo jazz e, mais tarde, se tornou saxofonista. Autor de best-sellers, o escritor e músico foi um dos autores mais conhecidos do Brasil. Verissimo morreu em 30 de agosto de 2025, após anos enfrentando várias doenças. Fonte: Brasil Escola.

 

 

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