O mundo se acostumou a encarar e respeitar os Estados Unidos como uma das maiores potências do mundo, não apenas pela força da economia, do empreendedorismo, da excelência de suas universidades, como principalmente pelo poderio bélico, historicamente presente em todos os grandes conflitos desde o início do século XX.
Ao mesmo tempo, os países do Ocidente, historicamente, aprenderam a admirar os líderes políticos e militares por trás desse poder. Desde os chamados "pais da república" americana, os "Founding Fathers", um grupo de figuras históricas que desempenhou um papel crucial na independência e na formação do país: George Washington, Thomas Jefferson, Benjamin Franklin, John Adams, e James Madison.
Nos últimos 50 anos, os EUA tiveram presidentes da República que foram decisivos em momentos cruciais da história da humanidade, como Franklin D. Roosevelt, durante a II Guerra Mundial, tendo se unido aos aliados para derrotar os nazistas da Alemanha, apoiados por Itália e Japão. Dwight Eisenhower, ex-comandante das tropas americanas na II Guerra e importante líder no pós-guerra; John Kennedy, um dos presidentes mais populares e lembrados dos EUA, decisivo na crise dos mísseis cubanos, que poderia ter levado o mundo a uma III Guerra Mundial, em 1962, presidente assassinado em 1963. Ronald Reagan (1981-1989), extremamente importante no ocaso da Guerra Fria, para forçar o fim da polarização do mundo entre duas ideologias antagônicas, que culminou no colapso da União Soviética. E Barack Obama, o primeiro presidente da raça negra na história americana. Fato que tem um grande significado pela história pregressa que os Estados Unidos tiveram em relação à discriminação racial.
As trapalhadas de Trump e cia.
O que aconteceu esta semana, num episódio que pode-se considerar inédito e absurdo, vai de encontro a essa tradição dos americanos, de terem as mais poderosas forças armadas do mundo, sempre envolvida em conflitos, alguns fracassados e discutíveis, é verdade. As autoridades da defesa e segurança americana, nomeadas por Donald Trump, cometeram um deslize que, além de amador, ridículo e inexplicável, expôs uma fragilidade impressionante na forma de gerenciar as informações reservadas e sensíveis da defesa do país.
Reportagem da agência Sky News mostra com toda a clareza o episódio surreal do secretário de Defesa de Donald Trump, junto com outros membros do staff de segurança do país, ter incluído o editor da revista americana The Atlantic (1), Jeffrey Goldberg, num grupo fechado que discutia a estratégia de ataque aos Houthis, do Iêmen, grupo esse, segundo os americanos, terrorista e que seria financiado pelo Irã.
O jornalista não entendeu como ele foi parar nesse grupo, certamente fechado. O fato extremamente grave para a defesa dos EUA até agora não teve uma explicação plausível. E pior, o Comandante supremo das forças armadas americanas, Donald Trump, confessou, numa tumultuada entrevista, que não tinha conhecimento do fato. Em vez de lamentar e dizer que iria apurar essa falha comprometedora e vergonhosa, ele aproveitou para atacar a revista “The Atlantic”, afirmando que “não sou fã dessa revista, é uma revista que está prestes a fechar”. Bizarra e lamentável a reação.
O absurdo da resposta, resolvendo atacar o mensageiro, em lugar de apurar e descobrir o que houve, mostra uma fragilidade incrível nos sistemas de informações estratégicas dos EUA. A Sky News publicou hoje o diálogo surreal das autoridades, discutindo e acertando toda a estratégia de como iriam atacar o Iêmen. A agência chamou o episódio de “patético”.
A versão do Editor da revista The Atlantic
“Um grupo de bate-papo de autoridades seniores dos EUA - ao qual um jornalista foi acidentalmente adicionado - discutiu planos para conduzir ataques aéreos contra os Houthis apoiados pelo Irã, no Iêmen, e com críticas ferozes à Europa "patética".
O editor-chefe da The Atlantic, Jeffrey Goldberg, foi adicionado ao "pequeno grupo Houthi PC" na rede Signal, na quinta-feira, 13 de março. Ele escreveu sobre o que foi dito nos dias seguintes em seu artigo The Trump Administration Accidentally Texted Me Its War Plans.
“Os líderes de segurança nacional dos EUA me incluíram em um bate-papo em grupo sobre os próximos ataques militares no Iêmen. Não achei que pudesse ser real. Então as bombas começaram a cair”, disse o jornalista no artigo publicado na revista em que é o Editor.
“O editor-chefe da The Atlantic foi uma mosca acidental na parede em um grupo de bate-papo onde autoridades seniores dos EUA discutiram planos de ataque aéreo e o que pensavam sobre "aproveitar" a Europa - com uma boa quantidade de emojis. Aqui está o que foi dito.’, diz a Sky News.
“Aqui está o que sabemos que foi dito no serviço de mensagens criptografadas Signal - em um grupo que incluía o vice-presidente dos EUA JD Vance, o secretário de defesa Pete Hegseth, o conselheiro de segurança nacional Mike Waltz e o diretor de inteligência nacional Tulsi Gabbard.”
Quinta-feira, 13 de março
Este dia aparentemente tinha como objetivo estabelecer quem comporia o pequeno grupo.
“Uma mensagem para o grupo, de Michael Waltz, dizia: "Equipe - estabelecendo um grupo de princípios [sic] para coordenação em Houthis, particularmente para as próximas 72 horas. Meu vice Alex Wong está reunindo uma equipe de tigres no nível de delegados/chefes de gabinete da agência, seguindo a reunião na Sala de Situação esta manhã para itens de ação e enviaremos isso mais tarde esta noite."
“A mensagem continuou: "Por favor, forneça o melhor POC da equipe de seu time para que possamos coordenar nos próximos dias e no fim de semana. Obrigado."
"Um minuto depois, o secretário de estado Marco Antonio Rubio escreveu: "Mike Needham para o Estado", aparentemente designando o atual conselheiro do departamento de estado como seu representante.
JD Vance escreveu: "Andy Baker para VP." Um minuto depois disso, Tulsi Gabbard, o diretor de inteligência nacional, escreveu: "Joe Kent para DNI." Nove minutos depois, o secretário do tesouro Scott Bessent escreveu: "Dan Katz para o Tesouro." Às 4:53 da tarde, Pete Hegseth escreveu: "Dan Caldwell para DoD."
E às 6:34 da tarde, um usuário chamado "Brian" escreveu "Brian McCormack para NSC." Alguém chamado "John Ratcliffe" então escreveu o nome de um oficial da CIA para ser incluído no grupo.
Quem é quem no chat?
Segundo o editor da revista, dezoito pessoas faziam parte do chat - aqui está quem parece ter sido adicionado e como eles foram identificados no chat:
JD Vance - vice-presidente dos EUA; Michael Waltz - conselheiro de segurança nacional; Marco Antonio Rubio - secretário de estado, identificado como MAR; Tulsi Gabbard - diretora de inteligência nacional, identificada como TG; Scott Bessent - secretário do tesouro, identificado como Scott B; Pete Hegseth - secretário de defesa dos EUA; Susie Wiles - chefe de gabinete da Casa Branca; Stephen Miller - vice-chefe de gabinete da Casa Branca, chamado SM no chat (identificado apenas por suas iniciais, que o relatório diz que o Sr. Goldberg "tomou como Stephen Miller"); Steve Witkoff - negociador dos EUA para o Oriente Médio e Ucrânia; e Jeffrey Goldberg - editor-chefe da revista The Atlantic, identificado como JG.
E prossegue a Sky News: “Outros membros incluíam vários funcionários do Conselho de Segurança Nacional e um funcionário da CIA que não foi nomeado no relatório porque é um oficial de inteligência ativo."
“Sexta-feira, 14 de março
“Às 8h05, o Sr. Waltz enviou uma mensagem de texto ao grupo: "Equipe, vocês devem ter uma declaração de conclusões com tarefas conforme a orientação do Presidente [sic] esta manhã em suas caixas de entrada de alto nível", com "alto nível" se referindo a sistemas de computador classificados.
"Estado e DOD [Departamento de Defesa], desenvolvemos listas de notificação sugeridas para Aliados e parceiros regionais. O Estado-Maior Conjunto está enviando esta manhã uma sequência mais específica de eventos nos próximos dias e trabalharemos com o DOD para garantir que o COS [chefe de gabinete], OVP [gabinete do vice-presidente] e POTUS [presidente dos Estados Unidos] sejam informados."
“O Sr. Goldberg diz que neste ponto, uma discussão política "fascinante" começou, durante a qual JD Vance escreveu: "Equipe, estou fora o dia todo fazendo um evento econômico em Michigan. Mas acho que estamos cometendo um erro. 3% do comércio dos EUA passa pelo Suez. 40% do comércio europeu passa. Há um risco real de que o público não entenda isso ou por que é necessário. A razão mais forte para fazer isso é, como disse o POTUS, enviar uma mensagem."
"Não tenho certeza se o presidente está ciente de quão inconsistente isso é com sua mensagem sobre a Europa agora. Há um risco adicional de vermos um aumento moderado a severo nos preços do petróleo. Estou disposto a apoiar o consenso da equipe e manter essas preocupações para mim. Mas há um forte argumento para adiar isso por um mês, fazendo o trabalho de mensagem sobre por que isso importa, vendo onde está a economia, etc."
“Às 8h27, chegou uma mensagem de Pete Hegseth dizendo:
"VP: Entendo suas preocupações - e apoio totalmente sua campanha com o POTUS. Considerações importantes, a maioria das quais é difícil saber como elas se desenrolam (economia, paz na Ucrânia, Gaza, etc.). Acho que a mensagem será difícil de qualquer maneira - ninguém sabe quem são os Houthis - e é por isso que precisaríamos nos concentrar em: 1) Biden falhou e 2) Irã financiado.
"Esperar algumas semanas ou um mês não muda fundamentalmente o cálculo. 2 riscos imediatos na espera: 1) isso vaza, e parecemos indecisos; 2) Israel toma uma atitude primeiro - ou o cessar-fogo em Gaza desmorona - e não podemos começar isso em nossos próprios termos. Podemos administrar os dois.
"Estamos preparados para executar, e se eu tivesse o voto final de sim ou não, acredito que deveríamos. Isso não é sobre os Houthis. Vejo isso como duas coisas: 1) Restaurar a Liberdade de Navegação, um interesse nacional fundamental; e 2) Reestabelecer a dissuasão, que Biden destruiu. Mas podemos facilmente parar. E se o fizermos, farei tudo o que pudermos para impor 100% de OPSEC - segurança operacional. Aceito outras ideias."
Ainda segundo a Sky News, "mais tarde na conversa, o Sr. Waltz criticou as capacidades limitadas das marinhas europeias, escrevendo: "Seja agora ou daqui a algumas semanas, terão que ser os Estados Unidos que reabrirão essas rotas de navegação. A pedido do presidente, estamos trabalhando com o DOD e o Estado para determinar como compilar os custos associados e cobrá-los dos europeus."
O Sr. Vance se dirigiu ao Sr. Hegseth em uma mensagem dizendo: "Se você acha que devemos fazer isso, vamos lá. Eu simplesmente odeio socorrer a Europa de novo."
“O Sr. Hegseth respondeu: "VP: Eu compartilho totalmente sua aversão ao parasitismo europeu. É PATÉTICO. Mas Mike está certo, somos os únicos no planeta (do nosso lado do livro-razão) que podem fazer isso. Ninguém mais nem perto. A questão é o momento. Sinto que agora é um momento tão bom quanto qualquer outro, dada a diretriz do POTUS para reabrir as rotas de navegação. Acho que deveríamos ir; mas o POTUS ainda tem 24 horas de espaço para decisão."
Uma conta que se acredita ser o vice-chefe de gabinete da Casa Branca, Stephen Miller, disse então: "Pelo que ouvi, o presidente foi claro: sinal verde, mas logo deixaremos claro para o Egito e a Europa o que esperamos em troca. Também precisamos descobrir como impor tal exigência. Por exemplo, se a Europa não remunerar, então o que? Se os EUA restaurarem com sucesso a liberdade de navegação a um grande custo, é preciso extrair algum ganho econômico adicional em troca.
Isso foi seguido pelo último texto do dia, do Sr. Hegseth, que escreveu às 9h46: "Concordo."
Sábado, 15 de março
Prossegue a reportagem da Sky News: "Às 11h44, o Sr. Hegseth postou no Signal uma "ATUALIZAÇÃO DA EQUIPE" - mas a revista The Atlantic não publicou o que foi dito.
O Sr. Goldberg escreveu em seu artigo: "Não citarei esta atualização ou certos outros textos subsequentes. As informações contidas neles, se tivessem sido lidas por um adversário dos Estados Unidos, poderiam ter sido usadas para prejudicar o pessoal militar e de inteligência americano, particularmente no Oriente Médio mais amplo, área de responsabilidade do Comando Central."
Ele disse que o Sr. Hegseth havia enviado um longo texto sobre como as primeiras detonações no Iêmen seriam sentidas duas horas depois, às 13h45, horário do leste. Ele disse que aguardou em seu carro no estacionamento de um supermercado, esperando para ver se os alvos Houthis seriam bombardeados.
Ele disse que foi no "X" e procurou no Iêmen por volta das 13h55, quando viu relatos de explosões sendo ouvidas em Sanaa, sua capital. Ele disse que a única pessoa a responder ao Sr. Hegseth pela manhã foi o Sr. Vance, que escreveu: "Farei uma oração pela vitória", junto com dois emojis de oração.
À 1h48, o Sr. Waltz forneceu uma atualização no grupo que o Sr. Goldberg não citou na íntegra, mas disse que o conselheiro de segurança nacional descreveu a operação como uma "trabalho incrível".
John Ratcliffe então escreveu: "Um bom começo."
O Sr. Goldberg disse que o Sr. Waltz respondeu com três emojis: um punho, uma bandeira americana e fogo.
Outros logo se juntaram, incluindo o Sr. Rubio, que escreveu, "Bom trabalho, Pete e sua equipe!!," e Susie Wiles, que enviou uma mensagem de texto: "Parabéns a todos - principalmente aqueles no teatro e no CENTCOM! Realmente ótimo. Deus abençoe."
O Sr. Witkoff respondeu com cinco emojis: duas mãos rezando, um bíceps flexionado e duas bandeiras americanas. Tulsi Gabbard respondeu: "Ótimo trabalho e efeitos!"
O Sr. Goldberg disse que a discussão pós-ação incluiu avaliações dos danos causados, incluindo a provável morte de um indivíduo específico - ele não disse quem.”
A revista The Atlantic decidiu publicar nesta quarta-feira (26) todos os diálogos de um grupo do alto escalão do governo, criado para discutir a ofensiva dos Estados Unidos contra os rebeldes houthis do Iêmen no dia 15 de março. A revista afirmou que não publica informações sobre operações militares se elas colocarem em risco as vidas de militares e explicou por que neste caso tomou a decisão de publicar:
"Os pronunciamentos e declarações de várias autoridades do governo, de que nós estamos mentindo sobre o conteúdo das mensagens, nos levaram a crer que as pessoas devem ver as mensagens para chegar às suas próprias conclusões. Existe um interesse público claro na publicação do tipo de informação que conselheiros de Trump incluíram em canais de comunicação não seguros, especialmente porque figuras do alto escalão estão tentando minimizar a importância das mensagens que foram compartilhadas".
Mais informações reservadas foram divulgadas pela revista The Atlantic, em 25 de março de 2025
Breve análise da crise no staff da defesa americana
Documentos confidenciais devem ter protocolos sobre divulgação, gravação, arquivamento, manuseio, destruição, etc. e sobre quem tem autorização para manusear esses arquivos. No caso de um vazamento de tamanha magnitude, é inconcebível o governo americano não se pronunciar oficialmente. Pior ainda, o presidente da República dizer que não sabia do vazamento e, de certa forma, desdenhar do fato grave acontecido, tentando tergiversar, atacando a revista The Atlantic, que não tem nada a ver com o vazamento.
Se aquele grupo de trapalhões fez uma bobagem, ao Editor e à revista caberia fazer o que qualquer veículo de comunicação faria: publicar a notícia. Enquanto isso, altos funcionários do governo Trump rejeitam responsabilidade por informações compartilhadas no chat da rede Signal. Sob intenso escrutínio e críticas de parlamentares democratas, o chefe da C.I.A. e o diretor de inteligência nacional apontaram para o secretário de defesa para determinar o que era apropriado compartilhar, segundo o New York Times. Da maneira desrespeitosa e até acintosa com que Donald Trump e seus principais assessores tratam os jornalistas e até autoridades de outros países, como aconteceu com o presidente da Ucrânia, não é surpresa esse escorregão. Só não se previa um erro grave acontecer numa área em em que os Estados Unidos se mostrou sempre um dos mais eficientes países do mundo. A segurança.
As reações e ataques ao vazamento das informações, que deveriam ser rigorosamente reservadas, movimentaram o Congresso americano no dia seguinte à divulgação dessa gafe. O prestigiado senador democrata Chuck Schumer, líder do partido no Senado, com 25 anos de mandato, afirmou no Congresso: "Esta é uma das violações mais impressionantes de inteligência militar sobre as quais li em muito, muito tempo... Já é ruim o suficiente que um cidadão privado tenha sido adicionado a esta cadeia, mas é muito pior que informações militares confidenciais tenham sido trocadas em um aplicativo não autorizado."
(1) The Atlantic é uma revista literária/cultural estadunidense, fundada em Boston, Massachusetts, em 1857, como The Atlantic Monthly, por um grupo de escritores que incluía Ralph Waldo Emerson, Henry Wadsworth Longfellow, Oliver Wendell Holmes, Sr. e James Russell Lowell (o qual seria o seu primeiro editor). Originalmente, era uma publicação mensal. Inclui artigos sobre ciência política e assuntos internacionais, bem como críticas literárias. Fonte: Wikipedia.
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