Na sequência das análises das crises que marcam este fim de ano no Brasil, o terceiro tema aborda uma triste chaga brasileira, que precisa de forma urgente ser combatida: o feminicídio. Em 2024, o Brasil atingiu o maior número de feminicídios desde o início da tipificação do crime, em 2015, apontou o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. No total, 1.492 mulheres foram vítimas, o que representa média de quatro mortes por dia. Ao longo do último ano, cerca de 37,5% das mulheres brasileiras foram vítimas de algum tipo de violência, percentual que, projetado em números, corresponde a um contingente de 21,4 milhões de pessoas. Os dados são da quinta edição da pesquisa “Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil”, realizada pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Em 2025, o Ministério da Justiça registrou quatro feminicídios por dia no Brasil. Até novembro, 1.331 mulheres foram assassinadas. E as tentativas de feminicídio aumentaram. Mesmo ainda sem ter acabado, este ano teve mais casos do que em 2024 e 2023. Uma média de 10 tentativas de matar uma mulher por dia no país, segundo o “Jornal Nacional” de 25/12/25.
É um número absurdo, como se houvesse uma cruzada no sentido de eliminar a mulher, como se os criminosos, de certo modo, se considerassem ‘donos’ das mulheres que cruzam seus caminhos. A ONU estima que cerca de 140 mulheres e meninas são mortas todos os dias por parceiros ou membros da família, significando que a cada 10 minutos uma mulher morre no mundo, assassinada pelos mais diferentes motivos. Que em alguns países, os direitos das mulheres são desrespeitados e reprimidos, até com a morte, nós já sabemos. Mas, e no Brasil, por que esse crime continua crescendo?
“O lar continua sendo um lugar perigoso e, às vezes, letal para muitas mulheres e meninas em todo o mundo. O relatório sobre feminicídio de 2025 serve como um forte lembrete da necessidade de melhores estratégias de prevenção e respostas da justiça criminal ao feminicídio, que levem em consideração as condições que propagam essa forma extrema de violência.”, diz John Brandolino, Diretor Executivo do escritório das Nações Unidas para drogas e crimes.
O Brasil também evoluiu muito no combate a esse crime, desde a Lei Maria da Penha, promulgada em 2006, que contempla várias modalidades de proteção às mulheres. Os estudiosos do tema apontam o machismo estrutural, a violência de gênero, a impunidade e, em muitos casos, a falhas do Estado nessa proteção como causa do aumento desse crime. A lentidão da Justiça e, algumas vezes falhas na apuração dos crimes, acabam favorecendo os culpados de violência ou morte das mulheres. Não é raro mulheres com medidas protetivas, atacadas várias vezes pelo mesmo agressor, serem vítimas fatais dos homens que as perseguem, porque o agressor não se importa com a determinação da lei. O objetivo dele é consumar o crime, como se ele tivesse condenado aquela mulher à morte.
Há uma falha nesse processo, que não impede de forma objetiva e efetiva a continuidade da perseguição, o ataque e, no limite, a morte das mulheres. Quantas mulheres com medidas protetivas foram assassinadas no Brasil nos últimos anos? Entre 2023 e 2024, pelo menos 121 mulheres foram vítimas de feminicídio mesmo possuindo medidas protetivas ativas no momento do crime. Este fato indica que a violação da MPU pode representar a etapa final antes do assassinato.
Segundo reportagem do UOL, de 24/07/25, em 2024, “mais de 100 mil medidas protetivas de urgência foram descumpridas no país. O número é 10,8% maior do que no ano anterior, quando foram registradas 87,6 mil falhas em manter o agressor longe das mulheres vítimas de violência doméstica. Os descumprimentos representam 18,3% do total de medidas concedidas pelo Judiciário ao logo do ano passado, que somaram 555.001. Ao menos 52 mulheres morreram enquanto tinham restrições judiciais ativas.
No início de 2025, foi feita uma pesquisa que concluiu: 9 para cada 10 mulheres acreditam que feminicídio aumentou em cinco anos. Além da percepção coletiva do aumento da violência de gênero no país, cerca de 60% das entrevistadas creem que a alta nos casos de feminicídio é intensificada pela sensação de impunidade. Para 32% das participantes, o machismo e outras violências contra mulheres são os fatores que contribuem para esse aumento. Vale perguntar, um ano após a pesquisa, qual a sensação das mulheres em torno dos crimes de feminicídio no Brasil? Pelo aumento desse crime, certamente nada mudou.
Há um clamor nacional para o feminicídio ser considerado um crime sujeito a penas mais severas. Agravando a pena, na medida em que o criminoso premeditou; usou de meio cruel; se a mulher tem filhos; se for menor de idade. Enfim, todo o processo, sendo monitorado para que a aplicação da lei seja um componente dissuasório desse crime.
Segundo o Laboratório de Estudos de Gênero, Poder e Violência, da Universidade Federal do Espírito Santo, “Não é de hoje que a violência contra a mulher é tema de debates na sociedade brasileira. Palestras acadêmicas, programas governamentais, noticiários cotidianos na televisão e em outros meios de comunicação, transmitem o quanto é absurdo o número de vítimas. Mas, qual deles exerce um papel necessário para que a misoginia estrutural possa ser desfeita?”
“O sentimento atual é de total impotência mediante todos os tipos de violência contra a mulher, seja física, psicológica ou sexual. Porque, por mais que se fale sobre o assunto, não há preocupação da maior parte da sociedade em evitar que mulheres possam parar de serem violentadas. E, isso ocorre principalmente por conta do movimento retrógrado que está acontecendo no âmbito político nacional, no qual os direitos dos grupos pertencentes à chamada “minoria” estão sendo facilmente retirados.”
Este é um tema recorrente na mídia. E não será com frases de efeito, protestos, posts nas redes sociais, opiniões desconectadas de ações práticas e efetivas que o Brasil vai combater e reduzir essa “epidemia” de crimes, desde o desrespeito, até as agressões e a morte de mulheres, como tem acontecido. Por incrível que pareça, a violência contra as mulheres no país aparenta ser algo cultural, fruto de uma anomalia que aos poucos foi aumentando, sem que houvesse uma ação dos governos, do Judiciário que atacasse esse crime na sua origem.
Outros artigos sobre o tema
Tainara, Denise, Adriana: por que tantos homens matam e ferem mulheres no Brasil?
Visível e invisível: A vitimização das mulheres no Brasil (2023)

