Policia nas ruasFrancisco Viana*

"... para mim felicidade é a morte"  (Shakespeare, Otelo o mouro de Veneza)

A morte, por covarde agressão, de um turista argentino no Rio de Janeiro, em Ipanema, mostra, de maneira trágica, o quanto a violência entrou no nosso cotidiano e como pode ainda se tornar mais presente. Banalizou-se.

É hoje, entre nós, uma forma dissimulada de fascismo. Um ovo de serpente. Que pode transbordar para crimes políticos e o terrorismo. Não há limites para o que pode acontecer.

Pior: todos parecem que se acostumaram à rotina da violência. Há uma podridão moral, típica de ciclos de decadência, que enfraquece o poder público e revela as entranhas da crise que vive nossa sociedade.

Uma visão retrospectiva irá demonstrar que sempre vivemos imersos na cultura da violência. Ou o que simbolizaria a destruição do Arraial de Canudos pelo Exército? As torturas praticadas nos idos de 1935, após o fracassado levante comunista? A extinção física das esquerdas no pós-64 como política de Estado?

Tudo isso transbordou, há anos, para uma guerra civil de novo tipo, onde, a cada dia, morrem jovens, negros, cidadãos comuns e  aqueles que, geralmente sem opção, enveredam pelos labirintos do crime.

Não é só. Evidências da cultura da violência também são demonstradas pelos assassinatos de mulheres, estupros, espancamentos, também de mulheres, racismo, homofobia, violência contra crianças, pedofilia, enfim, as diferentes faces da violência. Faces banalizadas.

Paradoxalmente, somos um país cristão. Só que quase não lembramos que, a despeito do Estado ser laico, o cristianismo tornou-se um princípio de ordem pública e não só um compromisso espiritual. Será que os jovens, todos de classe média, que mataram o turista argentino sabem disso?

De qualquer forma, o Governo (Federal e do Rio de Janeiro) tem o compromisso de promover campanhas e estimular a cultura da não violência. A mídia também. A violência não pode ser banalizada. Precisa ser erradicada do ambiente brasileiro como cultura.

A natureza leva muitos anos para criar a vida humana em todo o seu esplendor. Esse trabalho único não pode acabar com um soco, como foi o caso da vida do rapaz argentino.

Não há democracia sem valorização da vida. Não é uma questão de imagem e reputação. Mas de humanismo. Esse pressuposto é como um filtro que descobre o nosso entendimento racional da sociedade, um antídoto contra o narcisismo e o sentimento de impunidade. O sentimento de que a vida do outro não tem qualquer importância.

Mais de que uma questão individual, a violência revela o quanto precisamos mudar o modelo de sociedade: do compromisso com sentimentos que trazemos dentro de nós, para sentimentos voltados para o outro. Ou, em lugar do egoísmo narcísico e individualista, a solidariedade e a fraternidade.  

As imagens do crime mostradas pelo Jornal Nacional da TV Globo são horripilantes. São pura expressão da barbárie. Qualquer um de nós, seja quem seja, poderia estar no lugar do jovem argentino. E tombar, atingido por um golpe fatal, que também poderia vir por meio de um assalto, um sequestro ou uma bala perdida.

A cultura da violência é cega e devora qualquer um. Seu descendente mais direto e temido é o medo. Medo que consome e isola o cidadão. Medo mensageiro da depressão de viver num país antes considerado cordial, mas que se tornou absurdamente hostil.

*Francisco Viana é jornalista e doutor em filosofia política (PUC-SP).

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